O TEMPO

A vergonha

Ver nos dias atuais os “caciques civilizados se digladiarem, no momento que recomendaria a união, a sabedoria, o esquecimento de diferenças, deixa a prece do líder Sioux como uma oportuna leitura

Por Vittorio Medioli
Publicado em 07 de junho de 2020 | 03:00
 
 

Quando me mudei de continente, há 44 anos, tive que escolher muito bem as coisas que levaria na mala, de apenas 20 kg. Somente o essencial, e nela entrou o texto de uma prece singela, publicada em 1887, atribuída ao cacique Sioux Yellow Lark, doado a mim por uma pessoa muito importante na escolha de mudar, a mais difícil de minha vida. Num papel amarelado pelo tempo, ainda dobrado no passaporte que aqui me trouxe, em 1976, limpando gavetas, eu a li hoje com emoção. Seja pelos sentimentos expressos, seja pelas lembranças da ruptura com planos e sonhos de infância, especialmente acalentados pelos meus pais.

Repetiria a escolha, sem dúvida e sem qualquer arrependimento. Acredito que Deus me deu a inspiração certa para embarcar no destino que me aguardava.

A prece sinaliza que existem forças superiores que unem a humanidade, independentemente dos estudos, da cultura, da cor da pele e do país de nascimento. Sempre que a leio, imagino o cacique, “Pássaro Amarelo”, olhando, ao entardecer, para um ponto indefinido entre a planície e um céu vergado de cores, clamando a Deus:

“Ó Imenso Espírito, cuja voz sinto nos ventos/ e cujo respiro dá vida ao mundo todo,/ ouve-me./ Prostro-me frente a Ti, um dos tantos filhos Teus,/ insignificante e frágil./

Preciso da Tua força, da Tua sabedoria./

Permite-me caminhar entre as coisas belas/ e deixa que meus olhos admirem/ o pousar do sol vermelho e ouro./

Faz que minhas mãos respeitem/ o que Tu criaste,/ e meus ouvidos sejam preparados/ para ouvir a Tua voz./

Deixa-me sábio, de forma que eu reconheça as coisas/ que Tu ensinaste ao meu povo,/ as lições que escondeste em cada folha,/ em cada rocha./

Procuro força, não para ser superior aos meus irmãos,/ mas para ser preparado a combater/ o meu maior inimigo: eu mesmo./

Deixa-me sempre pronto para retornar a Ti,/ com mãos limpas e olhos francos,/ de forma que, quando a minha vida se findar/ como a luz no ocaso,/ o meu espírito possa chegar a Ti/ sem qualquer vergonha”.

Nada mais para dizer, quase tudo que um homem precisa ser.

Contudo, para eliminar a incômoda presença dos índios na América, levou-se a cabo um genocídio com a narrativa de que os povos indígenas eram uma ameaça grave para os colonizadores, e não o contrário.

Na tribo vivia-se sem dinheiro e sem complicações, regidos apenas pelo bom senso, por leis naturais, aquelas que o cacique Sioux pedia ao Supremo para poder compreender em seu íntimo, respeitar e usar para o bem de seu povo.

A humanidade acelerou-se vertiginosamente. Estonteia pensar que o número de seres humanos sobre a Terra em apenas 70 anos triplicou, e nós fazemos parte desse fenômeno incrível.

O desenvolvimento que conseguimos em tão breve tempo remete ao mito de Ícaro, a pandemia em curso pode ser o ponto em que as asas entram em combustão ao se aproximar do sol tão cobiçado.

Guerras, sofrimentos, extermínios, embora fossem “necessários” para adquirir o desenvolvimento atual, custaram o esquecimento da “vida” singela e feliz, como era no começo.

Ver nos dias atuais os “caciques civilizados” se digladiarem, no momento que recomendaria a união, a sabedoria, o esquecimento de diferenças, deixa a prece do líder Sioux como uma oportuna leitura.

Como poderão se reunir com o Supremo sem sentir vergonha de suas atitudes?