Vittorio Medioli

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O atraso se reorganiza

Publicado em: Dom, 22/09/19 - 04h00

O país passa por um momento grave e decisivo. Chegou aonde o caminho se bifurca: de um lado a placa indica um purgatório, inevitável para se regenerar dos pecados, e do outro a catástrofe, ou, mais precisamente, o inferno de um modelo venezuelano.

Estou falando de um país em que as instituições, corroídas pelos desmandos e interesses predatórios, foram levadas à falência. Como ocorreu em outros casos igualmente penosos, passando por caudilhos no comando de empreitadas catastróficas, enquanto, quase sempre, acumulavam bilhões de dólares fora das fronteiras nacionais.

Para compreender o espírito da coisa, é preciso um exercício, não usual: esquecer-se de que a dicotomia “direita versus esquerda” ofuscaria a análise dos fatos e da realidade que vivemos.

O chavismo não queria ir nem para um lado nem para outro. Adotou Simon Bolívar como inspiração e símbolo – um aristocrático iniciado na maçonaria em 1803, na Espanha, comandante de um pelotão que libertou países da América do Sul do domínio da Coroa espanhola. Não há na retórica bolivariana acenos a ideologias, apenas um sentimento libertário do jugo opressivo de um império. A escolha de se alinhar com países socialistas foi determinada pela necessidade de criar um colchão de interesses e um discurso popular, de caudilho.

Chávez passará à história como um oficial de exército que se aproveitou de seu carisma e capacidade de articulação para se apoderar do governo e transformá-lo numa ditadura. Não é que a Venezuela fosse um exemplo de honestidade antes dele, contudo conseguiu destruir o país com a maior reserva petrolífera do planeta, embarcando em aventura absurda e se arvorando em alturas perigosas, como Ícaro já tinha feito milhares de anos antes dele.

O Brasil, se não tomar um banho de realismo e objetividade, se não assumir a responsabilidade de se livrar de seus erros por escolha própria e apoio popular, corre o risco de se transformar numa Venezuela.

Quando em 1989 quedou o Muro de Berlim, alastrou-se uma crise ideológica sem precedentes por toda a Europa. As imagens do atraso do Leste, decorrentes da perda de liberdades, chocou as nações do Oeste e obrigou a uma reconsideração profunda.

Apesar de nunca imaginado, partidos se extinguiram, outros mudaram de nome, e todos alteraram a forma de abordar as massas. No lugar da intransigência e do radicalismo se passou a procurar o consenso, a razoabilidade. A maturidade retirou a prática de oposição inconsequente, que, antes de atingir o adversário, demolia o Estado, que é de todos.

O radicalismo, com o progresso e a maior renda, se atenuou e quase desapareceu. Não cabia mais na moldura. Entretanto, no Brasil persiste em larga escala e sinal do atraso intelectual.

Generalizou-se, na Europa, que em primeiro lugar “não podemos afundar”, “todos participamos da mesma tribo”.

O socialismo nunca mais foi o mesmo, a direita empedernida amoleceu-se, ambos acabaram alcançando o poder em grandes países, mas sem armar baionetas.

A democracia madura se instala quando as partes, antes de reivindicar direitos, assumem seus deveres. Deixam de fazer da política uma profissão e a adotam como missão. Abandonam a intransigência, o sectarismo, os conflitos efêmeros e se dedicam a melhorar a vida do cidadão.

A cada peça, categoria e classe se reconhece a imprescindibilidade para uma sociedade sustentável.

Entretanto, a extensão continental do Brasil, a distância da fronteira amazônica do Sudeste hegemônico, deixou a crise venezuelana amortecida na opinião pública. Pouco serviu para alertar sobre o risco que corre a nação.

Embora a Venezuela seja o local mais lembrado como “falência”, ainda está longe do entendimento da maioria que, se nada for feito para aprumar as finanças públicas, o destino de Brasília seguirá o de Caracas.

Os desgovernos movidos por privilégios e corrupção destruíram a capacidade do Estado de atender o cidadão e acabarão por abandoná-lo, dando calotes em aposentadorias e folhas.

Para o Brasil, o desmoronamento acontecerá de forma mais lenta devido à variedade de seus recursos econômicos, diversificados e lastreados em produtos agrícolas e minerais. Mas não sobreviverá a uma corrosiva irresponsabilidade, gastando mais do que arrecada e empurrando as contas e dívidas de um para outro governo. Já se saturou a possibilidade de ampliar a carga tributária, embora exista uma imensa condição de melhorar a qualidade e efetividade das receitas públicas.

Do contrário, a miserabilidade se expandirá, a renda per capita encolherá ulteriormente, e as receitas públicas não conseguirão atender, como já é caso de Minas Gerais, a necessidades mínimas da população. Nesse caso, a Constituição se transforma numa peça de ficção, incapaz de coexistir com a realidade.

Não há mais tempo a perder, o Brasil avança inexoravelmente em direção à Venezuela, embrulhado nos velhos vícios que perduraram enquanto os ventos sopravam a favor.

As facções retrógradas da corrupção voltaram a se unir e ganhar força, miram a enterrar a Lava Jato por meio do descrédito dos “corajosos”. Há em ato um golpe para restaurar a cleptocracia. E isso inevitavelmente levará ao caminho de Caracas. Infelizmente.