Vittorio Medioli

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Vittorio Medioli

Terra, átomo opaco do Mal

Publicado em: Dom, 21/07/19 - 03h00

A contagem regressiva durou vários dias, os adiamentos se seguiam, mantendo um clima de perturbação. Enfim, o lançamento do míssil, entre labaredas jogadas contra o planeta, levava a nave espacial de Cabo Canaveral, no dia 16 de julho daquele 1969, prometendo trazer de volta os primeiros homens a ousar o “impossível”.

Era um ano em que fervia a revolução cultural; bandas de rock, cabelos compridos e minissaias, barricadas nas praças pintavam um momento excepcional.

A primeira viagem tripulada rumo ao espaço, às orbitas em volta do nosso satélite, novas palavras nunca ouvidas ou imaginadas, alucinação das massas, teorias do fim do mundo, suspense, "será que um homem pisará na Lua?”. Muitos acreditavam que os astronautas não conseguiriam decolar e voltar à Terra.

O mundo tira folga para ver, crer e dizer: “Eu participei dessa conquista”, obviamente como espectador. Era a noite entre 20 e 21 de julho que se consumaria o primeiro passo em solo diferente daquele terrestre.

Meu pai, Riccardo, entusiasta, dizia que aquela data seria lembrada tanto quanto, ou até mais que 12 de outubro de 1492, dia da descoberta da América por Cristóvão Colombo.

O mês era de férias escolares, e na localidade de Ronchi, na Toscana, às margens do mar Tirreno, se alcançava a praia por ruelas estreitas, cortando um bosque de centenários pinheiros marítimos. Poucos saíram de suas casas ou das pousadas para aproveitar o sol e as areias. Cravados na frente daqueles aparelhos que pareciam caixas de bombons gigantes lançando imagens em preto e branco, riscadas por trêmulas interferências e ruídos, que alguém consertava a tapas.

Quando a transmissão saía do ar, dava desespero numa época em que era comum as transmissões internacionais não voltarem até a manhã seguinte. 

Dia inteiro de frenesi e ninguém se deitaria. Desde o café da manha até o jantar só se falava de astronautas.

Foi exatamente naquele histórico dia que começou a trabalhar em nossa casa uma jovem que por 46 anos ininterruptos seria parte “institucional” da minha família. Era órfã que, completando seus 18 anos, procurava um destino na Terra, enquanto o homem tentava na Lua.

Meu pai dizia: "Este é um dia que nunca será esquecido, a história vira uma página”.

Comentava-se, naquela época, a obra literária de Albert Camus “Calígula”, na qual o imperador expressava sua sede de impossível. Não satisfeito de dominar o mundo inteiro, levava os olhos ao céu para desejar conquistar o astro que iluminava de prata as noites no palácio do Capitólio.

Mais fantástico era improvável, a história sendo esculpida em imagens ao alcance instantâneo de meio bilhão de pessoas de todos os continentes.

Quebra de um paradigma “eterno”. Mudança das relações com o cosmo, não apenas por Neil Amstrong, mas qualquer um que pertencesse à humanidade. Um só homem já dava direito a qualquer outro de se sentir lá.

A humanidade ia ao encontro do seu potencial cósmico. Erguia-se como a vencedora da gravidade e não realizava apenas o sonho de Calígula, mas o mito de Ícaro. Quebrava as correntes de Prometeu.

Só se pensava na próxima conquista, em Marte, onde se desvendariam a mitologia e a lenda de outros seres.

Ganhamos de presente em 21 de julho de 1969 o direito de olhar o céu de outra forma, de sentir o infinito maior e descobrir que somos sem apelação menores que um grão de areia no deserto.

Embora depois daquele portentoso dia a literatura ganhasse séries infindáveis de viagens para outros sistemas e galáxias, hoje se passam 50 anos sem o homem ter ido além da Lua.

Meu pai, um contumaz observador do firmamento, a quem devotava respeito e poder, me chamou com emoção: “Menino, você viveu a maior conquista da humanidade de todos os tempos”.
Cristóvão Colombo já era menor.

Começávamos a olhar com a luneta os outros planetas e ver os anéis de Saturno com mais prazer.

Apaixonado por poesia, meu genitor declamava algumas com muita satisfação. E quando a imagem da Terra vista da Lua surgia na tela, lembrou-se da ode de Giovanni Pascoli “10 de agosto”, que finda com um angustiante recado: “... e tu cielo dall’alto dei mondi/ sereno, infinito, immortale/ oh, d’un pianto di stelle lo inondi,/ quest'átomo opaco del Male!” (e tu, céu do alto dos mundos/ sereno, infinito, imortal/ oh, de um pranto de estrelas o inundas/ esse átomo opaco do Mal!”. (No Hemisfério Norte, na noite de 10 agosto se repete a cada ano o fenômeno de milhares de meteoritos, pó de estrelas, cortarem o céu num espetáculo de cores e luz.)

E assim começou há 50 anos uma nova era.