A BHTrans atestou indícios de impropriedade e ilegitimidade no acordo firmado entre a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH), o Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros de Belo Horizonte (SetraBH) para o crédito antecipado de vales-transporte em meio à pandemia de Covid-19. Além disso, a solicitação por reequilíbrio não partiu das concessionárias de transporte público. As conclusões estão registradas na Informação Técnica 094/2021. O documento foi divulgado pelo ex-chefe de Gabinete do prefeito Alexandre Kalil (PSD), Alberto Lage, durante depoimento à CPI da Covid-19 nesta quinta-feira (21).
O documento foi elaborado pela BHTrans em agosto de 2021, quando os repasses já tinham sido encerrados. Ao todo, o município repassou mais de R$ 218 milhões as empresas entre março de 2020 e junho de 2021. A própria Informação Técnica, assinada pela Gerência de Estudos Tarifários e Tecnologia e pela Superintendência de Transporte Público da BHTrans, delimita a concessão de créditos em três períodos. O primeiro, entre março e julho de 2020, correspondente a 13 parcelas, foi desencadeado após a declaração de situação de emergência em saúde pública do Município de Belo Horizonte – Decreto 17.297/2020. À época, o presidente da BHTrans, Célio Bouzada, solicitou à Secretaria da Fazenda a avaliação para antecipar o pagamento de vales-transportes.
Então, os repasses continuaram até julho. A justificativa para os repasses era de que “o volume de receitas geradas, considerando a proporção da redução de passageiros transportados, provavelmente não serão condizentes com os custos necessários à operação, gerando impacto que pode afetar o equilíbrio das concessões”. Conforme registra o documento, outros ajustes foram sugeridos, como a “suspensão de linhas ou redução de faixas de horários sem operação, a fim de reduzir os custos operacionais, mesmo que ‘distantes proporcionalmente da redução de demanda apurada’”.
O segundo período, por sua vez, estendeu-se julho até dezembro de 2020. O início foi deflagrado após uma reunião entre Kalil, o secretário de municipal de Fazenda, joão Antônio Fleury, e o presidente da BHTrans, Célio Bouzada, diante de uma investigação aberta pelo Ministério Público. Na ocasião, acordaram em adiantar créditos de vales-transporte como uma “medida administrativa pertinente ao incremento do número de viagens feitas pelas concessionárias” e “forma de promover a melhoria do transporte coletivo no Município de Belo Horizonte”. Foram 18 parcelas pagas.
Já o terceiro período de depósito de créditos ao SetraBH deu-se entre dezembro de 2020 e junho de 2021. A etapa foi provocada após o próprio sindicato e as concessionárias BHLeste, Dez, Pampulha e Dom Pedro II pedirem uma audiência de conciliação junto ao Centro Judicial de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc) para o “pagamento dos subsídios necessários para fazer frente ao déficit tarifário”. Então, houve o acordo para que o Município pagasse semestralmente às concessionárias, por meio da Transfácil, os valores referentes à antecipação do vale-transporte dos servidores. Embora fosse válido até 30 de abril, o acordo foi prorrogado até junho. Vinte e nove parcelas foram repassadas neste período.
BHTrans quer apuração
De acordo com a análise, a própria BHTrans considera o pedido do então presidente Célio Bouzada à Secretaria da Fazenda para iniciar os repasses ilegítima e imprópria. O repasse é considerado ilegítimo porque, no entendimento dos técnicos, a necessidade de melhoria no fluxo de caixa das concessionárias era apenas uma suposição. “À época, inexistia qualquer pleito (das empresas) de revisão contratual cujo objeto fosse referente ao tema, ou seja, ilegítima por não se originar de um procedimento regular para reconhecimento de desequilíbrio contratuais”, pontua.
Além disso, é considerada imprópria porque o modo como foi feito o repasse “não se enquadra no rol das medidas contratuais possíveis”. Conforme o documento, os contratos de concessão firmados entre o Município e as concessionárias não preveem a modalidade de compra de vale-transporte enquanto “uma maneira de remediar possível impacto de redução de demanda do fluxo de caixa das concessionárias”. Por isso, a BHTrans entende que o repasse não tinha viabilidade legal.
O entendimento da autarquia, de acordo com o contrato, é de que repassar indevidamente receitas de créditos não utilizados às concessionárias, como os vales-transportes quitados antecipadamente, constituiria prejuízo à revisão tarifária. “O rendimento da venda antecipada de direitos de viagem constitui receita acessória que deve compor o cálculo de revisão tarifária”, pondera.
A BHTrans alerta que os repasses não podem ser considerados como forma de reequilíbrio por eventuais danos gerados pela pandemia. “Em primeiro lugar, porque esse procedimento não consta como uma alternativa contratual prevista a essa finalidade. Em segundo lugar, porque não houve análise prévia de desequilíbrio que estivesse vinculada às causas que iniciaram os repasses. (...) Ainda que houvesse o pleito de reequilíbrio protocolado (sic), eventual situação de desequilíbrio não foi processada pela BHTrans, fato este que também deverá ser apurado”, conclui.
A autarquia ainda pede que sejam apuradas as razões que levaram Bouzada a pedir a solicitação de adiantamento das receitas de vales-transportes; se os valores repassados encontram-se custodiados e, caso contrário, seja apurado possível desempenho irregular na liquidação; se os valores foram destinados às concessionárias, quais os impactos do reequilíbrio para o Município e a necessidade de revisão contratual; e quais as razões pelas quais um pedido de reequilíbrio protocolado em 2020 não foi atendido pela BHTrans.
Respostas
O TEMPO questionou tanto a BHTrans quanto a PBH por que, apenas o fim dos repasses, a análise foi feita e o que justifica os repasses entre março e dezembro de 2020, anteriormente ao acordo judicial, assim como o que ambas farão diante dos indícios de irregularidades apontados pelo documento.
A reportagem ainda indagou se os créditos já começaram a ser devolvidos ou quando serão. Entretanto, até o fechamento desta edição, não houve resposta.
A O TEMPO, o SetraBH, em nota, afirma desconhecer o teor da Informação Técnica 94/2021, elaborada pela BHTrans. Conforme o sindicato, caso houvesse qualquer ilegalidade ou irregularidade no processo, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais e o Ministério Público não teriam homologado o acordo firmado entre a PBH e o próprio SetraBH em dezembro de 2020.
Questionado se os valores repassados semanalmente entre março e dezembro de 2020 foram calculados pelas concessionárias, o SetraBH não respondeu. Entretanto, pondera que as operações do sistema em março do último ano estavam insustentáveis. "O sistema estava com uma queda de 75% na demanda de passageiros, mas operando com prejuízos ofertando 51% das viagens."
O SetraBH acrescenta que, à época, alertou o poder concedente que, sem ajuda, o sistema entraria em colapso. "Foi então que depois de diversas reuniões, a alternativa do adiantamento de vales foi avaliada como uma saída inteligente para manter o sistema operando. Cabe destacar que o contrato de concessão determina que o poder concedente é responsável por manter o equilíbrio financeiro do sistema."