O negro no lugar de destaque. É com essa máxima que alguns negócios tentam deslanchar em Belo Horizonte e região metropolitana. Apesar de ainda tímido, já é possível encontrar estabelecimentos voltados quase que exclusivamente ao público de pele retinta. Não se trata de exclusão dos consumidores brancos, mas de valorização das pessoas que, por séculos, foram marginalizadas.
"Antes, tínhamos de alisar os cabelos, não existiam profissionais qualificados para atender pessoas com madeixas cacheadas ou crespas. Hoje, enfim, esse cenário mudou. Há diversos salões na cidade com cabeleireiros especializados em cuidar de cabelos iguais aos meus. Sinto-me incluída na sociedade. Agora, posso ser quem eu sou". O relato é da designer Giselle Amorim, de 35 anos. Assim como ela, diversos consumidores de pele preta têm optado por frequentar negócios que saibam tratar as peculiaridades desse público.
A trancista congolesa Princess Kambilio Ekomba, de 35 anos, tem o público 100% preto. Morando em Belo Horizonte há 13 anos, quando chegou para cursar publicidade e propaganda na UFMG, ela vislumbrou no público negro uma forma de sobrevivência. Mas, mais do que isso, percebeu a oportunidade de empoderar pessoas de pele retinta a se aceitar e voltar às origens.
"Comecei a trançar cabelos no Congo por hobby. Em Belo Horizonte, a profissão veio como forma de ajudar no sustento. Quando cheguei aqui, percebi que poucas pessoas faziam esse serviço, e, as que faziam, cobravam caro. E eu sempre trancei cabelo como forma de embelezar a pessoa negra, como forma dela se identificar, de reconhecer de onde veio a sua cultura. Também percebi que o público negro daqui não trançava o cabelo, quis fazer a diferença", relatou.
Além de um salão no bairro Jaraguá, na região da Pampulha, Princess também tem um restaurante de comida africana. Como trancista, entretanto, que ela nota a importância do empoderamento negro. "Meu público é 85% feminino, e as mulheres saem maravilhadas com o resultado do cabelo. A autoestima sobe na hora. É gratificante", destaca.
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Representatividade para inspirar
Quem também levanta a bandeira do empreendedorismo negro é a técnica de enfermagem Elizabete Caetano, de 47 anos, e a sobrinha dela, a maquiadora Aline de Souza Ferreira, de 39. Enquanto a primeira produz peças personalizadas voltadas para a moda afro, a segunda é especialista em pintura facial em pessoas de pele retinta. Ambas têm o mesmo objetivo: lutar contra o racismo, ressaltar a beleza negra e inspirar pessoas pretas.
Elizabete é proprietária do Raízes BH. No ateliê, ela confecciona turbantes, brincos, colares, além de peças de vestuário como macacão, camisa, calça, blazer e até vestido de noiva. A capulana, pano multicolorido estampado com desenhos que simbolizam o Continente Africano, é o material utilizado.
"Eu via a moda afro nas TVs e em vídeos, mas não tinha acesso. Quando tive acesso ao tecido africano, vi que era o que precisava. Quero ver as pessoas elegantes, chamando atenção de uma forma positiva. A moda africana é isso, resgata a cultura e a ancestralidade do povo preto", define. Atualmente, Elizabete trabalha sob encomenda e faz as peças e os acessórios personalizados, conforme demanda.
Mas a intenção dela é grandiosa. "Quero que mais gente tenha acesso a isso. Estou reformulando meu negócio, principalmente para atender o público preto periférico. Quero que as meninas da periferia entendam o que é moda afro", ressalta. Para isso, ela pretende se inscrever em alguma lei de incentivo à cultura para ter verba, ampliar o negócio e atingir cada vez mais o público preto.
Já Aline atende tanto pessoas de pele escura quanto branca, mas o público dela é majoritariamente negro (95%). "Sou apaixonada por beleza. Quando comecei, há 20 anos, não havia disponibilidade de cores. Hoje, fico feliz por ser referência para mulheres negras. Saber que as pessoas pretas estão tendo acesso e condições de se maquiar, com produtos que não deixam a pele acinzentada, é uma vitória", comemora.
A maquiadora atende em um salão localizado em Vespasiano, na região metropolitana de BH, e, apesar de ser um público específico, garante que sempre há clientes. "As pessoas se sentam na cadeira e relaxam, porque sabem que vai dar certo. Hoje, empodero minhas clientes a usarem batom vermelho, sombras coloridas, a mostrar a beleza. Chega de falar que preto não combina com isso ou aquilo", provoca.
Maquiadora Aline de Souza Ferreira exibe nas redes sociais resultado das maquiagens feitas em pele negra. Crédito: Arquivo Pessoal
Negócios nichados de sucesso
Professora e pesquisadora da Fundação Dom Cabral especializada em Pessoas e Organizações, Elisângela Prato Furtado observa que nos últimos anos a estética negra passou a ser valorizada, o que explica o crescimento do mercado. "Esse movimento atingiu pequenas e médias empresas, que passaram a investir em produtos para pele e cabelo negro. À medida que temos o aumento do consumo, novos negócios são gerados", pontua. "E não podemos retroceder. Estamos fazendo o empoderamento para essas pessoas, para garantir a validação e aceitação. Enquanto estamos mais confiantes, estamos prontos para lutar contra o racismo", frisa.
Analista de negócio do Sebrae-MG, Patrícia Delgado reforça que os empreendedores de nicho - aqueles que trabalham com mercados específicos, com público menor, mas dedicado -, estão tendo a oportunidade de crescer. "Na pandemia, as pessoas viram a necessidade de se cuidarem mais, e todo esse setor, de saúde e bem-estar, não parou de crescer. As pessoas começaram a oferecer postagens específicas, para certo grupo de seguidores, e tudo isso contribuiu para o crescimento desse mercado de nicho", observa. "Além disso, tem crescido a mudança de mentalidade e do empoderamento", acrescenta.
Dados incertos
No Brasil, não há estudo específico sobre os negócios voltados especificamente para os consumidores negros. No entanto, pesquisa divulgada pelo Sebrae mostra a desigualdade racial no país. Ao mesmo tempo em que 52% dos empreendedores brasileiros - o que representa 15 milhões de donos de negócios - se declararam negros ou pardos, 77% desses trabalhadores recebem até dois salários mínimos por mês. Além disso, os empresários negros conseguem menos empréstimos bancários.