Na nova versão da novela “Vale Tudo”, os membros da família Almeida Roitman quase sempre estão discordando uns dos outros, exceto quando o assunto é a discrição, tratada como um valor inegociável e uma marca de distinção social. Essa preocupação já foi verbalizada diversas vezes pela vilã Odete Roitman, vivida por Debora Bloch, que parece ter ojeriza à exposição da intimidade ou à ostentação – atitudes que rotula como “cafonas”. O tema também aparece em falas de Afonso, personagem de Humberto Carrão, que frequentemente demonstra a intenção de preservar a imagem da família.
Essa percepção da discrição como atributo do que é chique e valoroso é evidenciada pela ausência dos Roitman das redes sociais e até pela forma como o clã se veste: a preferência é por tons neutros e sóbrios, sem a presença de logomarcas chamativas. Por vezes, à primeira vista, as peças podem parecer casuais ou até esportivas. A diferença é que, apesar da aparência despretensiosa, esses itens custam caro – não apenas por serem confeccionados com matéria-prima de alta qualidade, mas também por carregarem o valor simbólico da distinção.
É essa a lógica por trás do “quiet luxury” – ou “luxo silencioso”, em tradução livre –, uma tendência de moda que preza pela elegância minimalista e se popularizou como sinônimo de sofisticação discreta. O estilo ganhou evidência na série “Succession”, da HBO, que satiriza os comportamentos da elite bilionária: personagens que viajam de jatinhos particulares e controlam conglomerados midiáticos, mas que evitam roupas ostensivas, optando por peças de corte impecável, materiais nobres e ausência de logos.
A série norte-americana, inclusive, é uma referência direta para a construção do figurino dos Almeida Roitman, como já reconheceu a figurinista Marie Salles em entrevistas. “Nas novelas, há uma visão estereotipada do rico: corrimões dourados, pias de ouro, aquela coisa da fantasia. No caso dos Roitman, queríamos mostrar um outro lado – o da elite que não quer ser vista. O tal do ‘quiet luxury’”, explica. Ela cita o exemplo de Heleninha, personagem de Paolla Oliveira, cujo estilo evidencia conforto, com roupas largas, tecidos sofisticados e sobretudos que funcionam como uma “terceira peça” – recurso comum na moda que adiciona camadas ao look. “Ela usa roupas largas, sem estrutura, o que reflete seu próprio estado emocional. E sempre uma terceira peça, porque ela é uma pessoa insegura, está sempre se escondendo”, informa.
Já Afonso, triatleta por hobby, aparece com frequência usando roupas esportivas, inclusive em contextos formais – algo que não o afasta da estética do quiet luxury. “Gente rica usando looks esportivos, porém caros, também representa esse ‘luxo silencioso’, desde que as peças não tenham logomarcas estampadas”, observa Suzana Cohen, doutora, professora e consultora em tendências. Ela diferencia essa estética — que tende a ser mais excludente – de outra tendência recente da moda: o sportcore, que consiste na combinação de elementos do universo esportivo (como camisetas de futebol ou basquete) com peças sofisticadas. Para continuar no universo de “Vale Tudo”, esse tipo de combinação seria mais facilmente encontrado nos guarda-roupas de personagens como Solange Duprat, de Alice Wegmann, e Sardinha, de Lucas Leto.
Mimetização
Suzana Cohen destaca que produtos de entretenimento – como novelas e séries – sempre foram catalisadores de tendências de moda, comportamento e linguagem. “É o que chamamos de contágio social e mimetização”, explica, inteirando que tanto “Vale Tudo” quanto “Succession” retratam a vida dos super ricos e do chamado “dinheiro velho”, e o público, movido por curiosidade ou admiração por esse universo distante, tende a copiar seus modos de vestir.
“O ‘quiet luxury’ é um estilo originalmente associado a quem consome marcas de luxo, mas de forma discreta. Não há exibição de logos, porque o que importa é a qualidade: materiais, corte, design, acabamento. É uma forma de expressar status sem ostentação – um statement típico de quem tem dinheiro há gerações. Isso contrasta com a cultura da ostentação dos ‘novos ricos’. É quase como se fosse uma disputa entre o ‘bom gosto’ e a suposta cafonice”, detalha a especialista.
Um diálogo recente entre Odete Roitman e Fátima, interpretada por Bella Campos, ilustra com didatismo essa premissa: “Quem tem dinheiro de verdade não fica se pavoneando na internet; só novo rico”, ensinou. O assunto era as redes sociais, mas poderia ser também os modos de se vestir. Não por acaso, no convite de casamento de Afonso e Fátima, publicado nos perfis da Globo na semana passada, constava: “Traje: old money ou quiet luxury”.
Suzana prossegue observando que, embora em sua forma genuína envolva produtos de grifes renomadas, a estética tem ganhado força junto ao grande público por meio da chamada “dupe culture” – “cultura das imitações”, em português –, em que versões baratas e acessíveis são criadas para reproduzir o visual luxuoso, às vezes por meio da falsificação. “Essa estética minimalista surge como uma reação a tendências mais extravagantes, como a logomania – que valoriza a exibição de marcas –, como no aumento de logos com animais como cavalos, jacarés ou tigres em camisetas e polos”, analisa.
Subversão
Pegando o gancho do jacaré, Suzana cita como exemplo a adoção da Lacoste por jovens das periferias brasileiras, que ressignificam a marca originalmente associada ao tênis e à elite. “Ao copiar o estilo das quadras, esse uso se torna uma representação irônica, talvez uma expressão do desejo pela ‘vida de rico’, mas também uma afirmação de identidade. É fabuloso do ponto de vista da autonomia da moda, que sempre ganha vida própria nas ruas”, reflete.
Essa mesma lógica está por trás da popularização do sportcore à brasileira. “Precisamos entender que essas microtendências – chamadas de ‘core’ – são altamente segmentadas e se sobrepõem em conceitos. Há semelhanças e diferenças entre sportcore, athleisure e blokecore, por exemplo. O sportcore pode ser visto como o uso de peças esportivas no dia a dia – o que se aproxima do athleisure (mistura entre ‘athletic’ e ‘leisure’, ou seja, roupa de ginástica adaptada para momentos de lazer)”, compara.
Por outro lado, situa, quando o sportcore assume a forma de combinação entre camisetas de futebol, moletons ou tênis esportivos com elementos mais sofisticados ou urbanos, ele se aproxima do blokecore – uma tendência de origem britânica inspirada no estilo casual dos torcedores de futebol dos anos 1990. “Nesse caso, mulheres e pessoas LGBTs, principalmente, brincam com a mescla entre esportivo e fashion como uma provocação estética e social, muitas vezes irônica, nem sempre consciente”, complementa Suzana. “É o uso de camisetas esportivas combinadas com calças de alfaiataria, sapatos estilosos ou bolsas de grife – um toque ‘cool’ que vem do streetstyle asiático, sobretudo japonês e coreano, e que celebridades como Taylor Swift e Billie Eilish ajudaram a disseminar”, aponta.
Artistas brasileiros também aderiram ao estilo, como a drag Pabllo Vittar, que, de férias no Japão, combinou camiseta e bermuda esportiva, mas de grife. Outro exemplo é o cantor Jão, que lançou no início do ano uma camiseta listrada de rosa e azul – cores da bandeira bissexual – com o brasão do fictício time “Meninos e Meninas”.
(Com Folhapress)