As drogas sintéticas ilícitas são uma ameaça mundial que os países devem enfrentar unidos, alertou um funcionário do governo dos Estados Unidos durante uma visita à Argentina e ao Uruguai. Em outubro, Todd Robinson, o então secretário de Estado adjunto para Assuntos Antinarcóticos, falou sobre a preocupação de Washington com a globalização das organizações criminosas e uma eventual irrupção na América Latina de opioides sintéticos como o fentanil, que tem feito estragos nos EUA. “Onde houver consumo de drogas, cedo ou tarde haverá consumo de drogas sintéticas”, advertiu Robinson.

O secretário considera que Nicarágua, Venezuela, Cuba e Bolívia são “pontos cegos” na luta contra as drogas na América Latina. “Não podemos ignorá-los, mas também não podemos convidá-los a trocarem informações, já que em alguns casos são parte do problema”, afirmou. Ele também destacou que o narcotráfico não conhece fronteiras.

No Brasil, observa-se um crescente consumo de medicamentos opioides, tanto aqueles obtidos sem prescrição quanto os vendidos em farmácias mediante receita médica, analisa a médica psiquiatra Marcia Surdo Pereira, em artigo publicado no portal da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e Outras Drogas (Abead). “Relatos recentes sobre o aumento do uso de fentanil no Brasil são preocupantes, mas uma crise semelhante à dos EUA ainda pode ser evitada. Muitas vezes, o uso de opioides é combinado com álcool e benzodiazepínicos. Considerando a atual crise dos opioides relatada nos países da América do Norte, é crucial que essa tendência seja monitorada de perto no Brasil. A codeína, um opioide leve e geralmente indicado para dores moderadas, responde por mais de 90% das prescrições, com oxicodona e metadona representando o restante”, afirma.

A Senad divulgou um informe sobre apreensões, uso e controle de fentanil em um evento realizado no âmbito do Comitê Técnico do Sistema de Alerta Rápido, com a participação de representantes do governo e especialistas no tema, em maio de 2023, após a apreensão de uma carga de fentanil no Espírito Santo. A secretária nacional de Políticas sobre Drogas, Marta Machado, ao tratar da questão do fentanil no Brasil, ressaltou que “as apreensões têm sido esporádicas e não representam uma epidemia como nos EUA”.

Nessa mesma reunião, o coordenador do Centro de Informação e Assistência Toxicológica (CIATox) de Campinas, José Luiz da Costa, ao apresentar casos de exposição a drogas adulteradas com fentanil (como maconha sintética, cigarros eletrônicos e selos de LSD), destacou a importância de treinar as equipes de saúde para identificar possíveis casos de intoxicação por opioides e realizar o manejo adequado do paciente, incluindo o uso do antídoto naloxona e fitas de teste. No Brasil, a Anvisa informa que a codeína, a oxicodona e o fentanil estão sujeitos a receituário de controle especial, além de impor restrições aos seus precursores.

Médica fala em adotar ‘cautela na prescrição dos opioides’

Desde 2022, também foi implementado no Brasil um controle mais rigoroso sobre o armazenamento, a guarda e o descarte de narcóticos em ambiente hospitalar (RDC 757, de outubro de 2022).

“Em um mundo acelerado, com pouca tolerância ao desconforto, é essencial adotar mais cautela na prescrição de opioides, além de promover o treinamento e a criação de protocolos para o tratamento adequado, especialmente da dor crônica, minimizando o risco de dependência química e evitando práticas como o ‘doctor shopping’”, afirma a médica psiquiatra Marcia Surdo Pereira. 

Especialistas também reforçam a importância da implementação de estratégias integradas pelos setores de saúde, segurança pública e administrações hospitalares para proteger a saúde pública e evitar o surgimento de uma epidemia de opioides no país. 

MINIENTREVISTA - Fabrício Moreira

Professor de farmacologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

“Estamos pesquisando fármacos que possam
evitar os efeitos de abuso do fentanil”

Quais fatores contribuem para que o fentanil seja considerado uma das principais ameaças à saúde pública global?

O fentanil é um medicamento da classe dos opioides. O fármaco protótipo dessa classe é a morfina, a partir da qual foram sintetizados outros com maior potência, a exemplo do próprio fentanil. Eles são utilizados como analgésicos, ou seja, para aliviar dores moderadas a intensas. Mas o fentanil, sendo de alta potência, é de uso hospitalar, para casos de cirurgias. Nesse contexto, o seu uso é seguro, por ser feito com monitorização cardíaca e respiratória e sob o uso suplementar de oxigênio. O problema com o fentanil é que ele apresenta um alto potencial de abuso. Isso ocorre devido à sua capacidade de estimular áreas do cérebro relacionadas às sensações de recompensa e de prazer. No caso do consumo inapropriado dessa substância, o maior risco é o de depressão respiratória. Fora do contexto hospitalar, uma situação que seria facilmente revertida se a pessoa estivesse sob monitorização pode se tornar fatal.

Como as organizações internacionais, como a OMS, estão respondendo à disseminação global do fentanil?

Essas organizações vêm tentando fazer o papel que lhes é conferido, de educar as pessoas, orientar profissionais sobre como proceder e sugerir políticas públicas para enfrentar a situação. A OMS, em parceria com o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), apoia os países em relação ao uso devido, médico e racional de opioides. Por meio do seu Comitê de Especialistas em Dependência de Drogas, a OMS recomendou colocação de vários opioides sintéticos, incluindo análogos de fentanil, sob controle internacional, o que significa regulamentação rigorosa para a sua disponibilidade. Além disso, faz recomendações sobre a disponibilidade da naloxona e também das formas de tratamento para a dependência ao opioide. A parceria OMS/UNODC lançou em 2016 a iniciativa “Stop Overdose Safely (SOS)”, para fornecer treinamento sobre como reconhecer o risco de overdose e fornecer cuidados de emergência pertinentes.

Você acredita que a crise dos opioides está chegando ao Brasil?

Embora as apreensões de fentanil e de seus análogos, bem como os casos de intoxicação, tenham se tornado mais frequentes no Brasil, ainda não há evidência de uma situação tão alarmante quanto a que vem sendo observada em alguns países, como nos Estados Unidos.

O senhor disse que está orientando uma mestranda em farmacologia em um projeto sobre o fentanil. Poderia explicar do que se trata?

Estamos pesquisando fármacos que possam evitar os efeitos do abuso do fentanil, sem interferir no seu efeito analgésico. É um projeto de pesquisa em etapa inicial, ainda em fase de estudos de laboratório. A pesquisa em farmacologia é sempre um grande desafio, mas que consideramos de extrema importância.

Quais são os desafios na regulação e no controle do uso medicinal do fentanil em comparação com o seu uso ilícito?

O fentanil é de extrema importância em anestesiologia. A grande preocupação está no uso recreativo e ilegal do fentanil e de seus análogos e nos danos gravíssimos associados. É fundamental que os profissionais que lidam com esses medicamentos e os pacientes que deles necessitam tenham o direito de acessá-los devidamente. Ou seja, como no caso de qualquer medicamento que tenha potencial para ser droga de abuso, é importante que a regulação seja feita de modo a proteger as pessoas dos riscos que esses medicamentos oferecem, mas sem privá-las dos benefícios que eles podem trazer.