Há dez anos, Alan Kurdi, um menino de 3 anos, morreu afogado tentando chegar à ilha grega de Kos. A foto de seu corpo em uma praia turca obrigou o mundo a encarar a crise dos refugiados em 2015.
A família tentava fugir da guerra na Síria. O plano era atravessar a Turquia rumo à Europa e, depois, alcançar o Canadá, onde viviam parentes. Na travessia entre a Turquia e a Grécia, morreram, além de Alan, seu irmão Galip, de 5 anos, sua mãe, Rehan, e ao menos outras nove pessoas -o pai, Abdullah, foi o único da família a sobreviver.
Alan e sua família eram de Kobane, cidade no norte da Síria que ganhou notoriedade como palco de violentas batalhas entre o Estado Islâmico e forças curdas.
Segundo Abdullah, a família já havia tentado duas vezes chegar à Grécia. No dia da viagem fatal, o motor do barco falhou e, em uma das tentativas de conserto, a embarcação se desestabilizou e virou com as fortes ondas. "Tudo estava escuro e todo mundo gritava. Eu não conseguia escutar as vozes dos meus filhos nem da minha esposa", relata, após nadar até a margem turca -para onde também foi levado o corpo de Alan.
A princípio o mundo reagiu com compaixão. As doações a instituições de caridade aumentaram, o Reino Unido prometeu acolher 20 mil sírios, a França 24 mil e a Alemanha abriu temporariamente suas portas sem restrições.
No ano seguinte, Abdullah e sua irmã, Tima, fundaram uma ONG para ajudar refugiados chamada Alan Kurdi Foundation, após visitarem um campo de refugiados no Curdistão.
Ela também publicou o livro Boy On The Beach (menino na praia, em tradução livre), em referência à forma em que seu sobrinho foi retratado ao redor do mundo. Segundo Tima, depois da tragédia, autoridades ocidentais tentaram se esquivar da própria responsabilidade, assumindo o papel de cuidadores imparciais.
De repente, "o passaporte expirado [de Abdullah] e a ausência do cartão da ONU deixaram de ser obstáculos. As autoridades passaram a tratá-lo com a dignidade e humanidade que haviam sido negadas por tantos anos -o mesmo tipo de reconhecimento comunitário negado a milhões de refugiados", afirma ela no livro.
Abdullah, no entanto, optou por ficar em Kobane após enterrar a esposa e os filhos na cidade natal. Depois, passou a viver em Erbil, no Curdistão iraquiano. Casou-se de novo e teve outro filho, nomeado Alan Kurdi. O nome se transformou em símbolo, dando título a praças e até a um barco de resgate no Mediterrâneo.
"O mundo todo se comoveu. Passou um mês, dois meses, três... E, lamento, tudo voltou a ser como era. Infelizmente", lamentou Abdullah.
"Eu queria que a comunidade internacional abrisse seus corações para a situação dos refugiados", disse ele ao jornal britânico The Guardian. "Mas ninguém estava ouvindo. Todos queriam usar aquela foto e o que aconteceu para seus próprios fins."
A imagem de uma criança morta evocou sensibilização pelo mundo, muitos se afetaram, mas não levou a mudanças estruturais, afirma a pesquisadora britânica Erica Burman, da Universidade de Manchester, à reportagem. Para ela, é contraditório o discurso de salvar crianças e, ao mesmo tempo, mantê-las em zonas de guerra.
De lá para cá, a guerra na Síria mudou de configuração: a ditadura de Bashar al-Assad caiu, o país passou ao controle do HTS (Hayat Tahrir al-Sham, ou Organização para a Libertação do Levante), e o Estado Islâmico perdeu território, embora continue reivindicando autoria de ataques. Os curdos continuam sem um país.
Em 2020, três homens turcos foram considerados culpados pela morte de Alan e condenados a 125 anos de prisão na Turquia por trafico ilegal de pessoas.
Enquanto isso, refugiados continuam morrendo no Mediterrâneo, e a Europa endurece cada vez mais suas políticas migratórias, em meio a uma ofensiva populista contra imigrantes, que atinge até países como Portugal.
A rota do Mediterrâneo Oriental que envolve a migração marítima da Turquia para a Grécia foi a principal rota marítima utilizada para entrada irregular na Europa em 2015, por onde quase um milhão de imigrantes tentaram atravessar o Mediterrâneo, segundo a Organização Internacional para as Migrações da ONU.
O número de pessoas que utilizam esta rota marítima caiu drasticamente após a implementação de um acordo entre a União Europeia e a Turquia, no final de março de 2016, que aumentou o número de refugiados mantidos em território turco.
Desde então, o fluxo diminuiu muito em relação a 2015. Mesmo assim, desde então, 4.399 imigrantes morreram na porção oriental do Mediterrâneo.