O Brasil continua sendo, ano após ano, o país onde mais se mata pessoas transexuais — pelo menos, entre as nações onde há dados disponíveis. Fora daqui, e mesmo em países mais ricos, o cerco também parece se fechar contra essa população, com uma crescente de leis que tentam impedir seu acesso a direitos básicos. Neste Dia Internacional do Orgulho LGBTQIAPN+, celebrado em 28 de junho, os EUA já bateram o quarto recorde anual consecutivo de legislações contra a população trans, segundo o site de monitoramento legislativo “Anti-Trans Bills”. Neste ano, a Rússia, que historicamente tem ações de repressão contra pessoas LGBTQIAPN+, endureceu ainda mais suas leis. Com tantas frentes contrárias, vive-se, hoje, o fim das conquistas sociais das últimas décadas?
Nos EUA, 49 dos 50 Estados apresentaram projetos contra direitos da população trans neste ano — foram 560 e 83 passaram, até agora, de acordo com o “Anti-Trans Bills”. Na Flórida, por exemplo, menores de idade trans ficaram proibidos de fazer procedimentos de transição de gênero, inclusive hormonais, e adultos trans precisam do consentimento por escrito de dois conselhos de medicina para realizá-los. O governador do Estado, Ron DeSantis, é um dos principais concorrentes de Donald Trump na corrida para decidir o candidato do Partido Republicano à presidência do país em 2024.
As leis vão além da população trans e miram inclusive manifestações artísticas. O Tennessee aprovou uma lei que restringe apresentações de drags no Estado, na esteira de decisões similares em outros pontos dos EUA. A lei foi derrubada, entretanto, por um juiz distrital, que a considerou "inconstitucionalmente vaga e substancialmente ampla demais". Em 2022, por temor de uma revisão da Suprema Corte sobre o direito ao casamento de pessoas LGBTQIAPN+, o Congresso norte-americano transformou em lei a garantia ao matrimônio, que só foi conquistada no país em 2015 — no Brasil, foi em 2013.
Na Rússia, o presidente Vladimir Putin sancionou uma lei que proíbe a divulgação de conteúdos sobre pessoas LGBTQIAPN+ para qualquer público — a lei que vigorava até 2022 restringia a divulgação somente para crianças. Em todo o mundo, pelo menos 67 países punem com prisão ou pena de morte expressões de identidade ou sexualidade LGBTQIAPN+, de acordo com a Unaids, braço da Organização das Nações Unidas (ONU) de prevenção e tratamento de HIV.
O momento é de disputa entre forças contrárias, avalia o professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coordenador do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT (Nuh/UFMG), Marco Aurélio Máximo Prado. Ele pondera que as proposições que atacam direitos das pessoas LGBTQIAPN+ não são somente reacionárias — isto é, não estão simplesmente reagindo ao progresso. “Não é só um movimento reativo. Ele é produtivo e produz uma ideia de gênero, uma ideia de sexualidade, uma noção de sociedade”, pontua.
Nesse caso, é uma ideia que reafirma conceitos antigos: a de que se nasce homem ou mulher e que um deve se relacionar somente com o outro. Mas o pesquisador lembra que esse ideal já foi dissecado e alterado pela ciência há muito tempo. “O movimento ultraconservador impede que as pessoas acessem o debate científico contemporâneo. Todo conceito vai sendo alterado na história. A história altera nossa compreensão de nós mesmos”, lembra.
“Ideologia de gênero” é espantalho para conservadores, diz pesquisador
O termo “ideologia de gênero” é utilizado desde o final dos anos 90 por alas conservadoras para atacar estudos e reflexões sobre como a ideia de gênero foi sendo construída ao longo da história. Ele não é um conceito científico e, na última década, vem sendo utilizado lado a lado a uma série de outros conceitos que não têm relação entre si, contudo são pautas comuns a movimentos de extrema-direita no mundo, avalia o pesquisador Marco Aurélio Máximo Prado. “É como se ele fosse um espantalho sem forma, porque ‘gruda’ em coisas completamente heterogêneas. O Brasil foi um excelente laboratório para isso, quando começou toda uma movimentação na sociedade civil e nas assembleias legislativas com uma ideologia anti-gênero e anti-LGBTQIAPN+”. Só até meados de março, o Brasil teve, em média, um projeto de lei antitrans por dia, segundo levantamento do jornal “Folha de S.Paulo”.
O professor avalia que, em muitos casos, movimentos de direita usam a pauta de costumes para se promover, ganhar tração no debate público e promover outras pautas que interessam a eles. “Estamos vivendo uma regressão democrática e o gênero é só um espantalho do momento”, pontua.
O pesquisador da história LGBTQIAPN+ em BH Luiz Morando acrescenta que o discurso conservador se disfarça: “Ele diz que a ideia é defender uma ideia nuclear de família, de bons costumes e comportamentos sociais. Só que, na verdade, só demonstra uma ação de repressão, de retirada de direitos e de desequilíbrio nas relações entre a população LGBTQIAPN+ e o restante da sociedade”.
Leis antiLGBTQIAPN+ são também antidemocráticas
O conceito de democracia não implica somente fazer o que a maioria decide, mas garantir que também as minorias tenham acesso a direitos. Por isso, leis que cerceiam a liberdade de pessoas LGBTQIAPN+ são antidemocráticas, argumenta o professor Marco Aurélio Máximo Prado. “A democracia pressupõe o aprofundamento obrigatório dos direitos de minorias que não tenham direitos ainda. A criação de direitos que ainda não existem é fundamental para a democracia. Leis como na Flórida impedem a diversidade humana. Elas são uma regressão histórica, porque a história promove outras formas de sermos, outras compreensões sobre o ser humano”, aprofunda.
Ele não se declara otimista, entretanto avalia que, no Brasil, há espaço para a conquista de mais direitos. “Temos um momento ímpar de reconstrução desse debate no país. O retrocesso foi pior nos últimos anos, sem dúvida nenhuma, mas, agora, estamos em um momento de disputa”, conclui.