O sistema eleitoral estadunidense funciona por votação indireta. Sem pormenorizar, cada Unidade Federativa tem um número de delegados fixado por lei que compõem um colégio eleitoral. O candidato que conquistar a maioria do voto popular dentro do Estado leva o conjunto dos votos dos delegados. Contudo, o número de delegados não está em relação de proporcionalidade direta com a demografia contemporânea de cada Estado, sendo possível que um território muito populoso esteja proporcionalmente sub-representado no número de delegados.
Esse sistema de eleição em duas fases não é exclusividade ianque nem era incomum na época em que foi criado, há 235 anos, quando da promulgação da Constituição da jovem nação, ex-colônia britânica. O sistema foi pensado pelos “intocáveis” pais fundadores para prevenir que o povo comum, vulnerável e pouco instruído, fosse levado a eleger demagogos e populistas à Presidência da República.
O tiro saiu pela culatra, e esse mesmo sistema permitiu que Donald Trump, um demagogo populista, para dizer o mínimo publicável, ocupasse o posto mais alto do Executivo federal. Sua adversária em 2016, Hillary Clinton, apesar de ter vencido o voto popular, com a maioria indiscutível de células depositadas com seu nome, não levou a Presidência dos 50 Estados, justamente pelo desequilíbrio entre o número de votos individuais e eleitores colegiados.
Atentado
Hoje, em 2024, Trump, megaempresário, ex-presidente não reeleito para segundo turno consecutivo e condenado pela Justiça estadunidense, segue elegível e disputa o Salão Oval pelo Partido Republicano. Sua adversária pelo Partido Democrata é Kamala Harris, atual vice-presidente do país, promotora de Justiça, que herdou o bastão do veteraníssimo Joe Biden.
Enquanto Biden ainda estava concorrendo, Trump sofreu um atentado e foi alvejado na orelha. A cena dele com punho fechado para o alto, conclamando à multidão “Lutem! Lutem!”, levou muitos a dar por vencido o embate. O frágil Biden, dando sinais de senilidade, contra o mártir bilionário era quase um “Davi e Golias” invertido.
A renúncia de Biden à corrida presidencial e a comoção gerada pela confirmação de Harris como candidata mudaram o cenário da disputa. A democrata conseguiu, de imediato, aglutinar setores relutantes do partido dela e entre os independentes. Afinou o discurso para se comunicar com as maiorias de trabalhadores, abandonando a malfadada “pescaria em aquário”, ou pregação aos convertidos, pecado mortal do campo progressista lá e cá.
Debate
A desenvoltura dela nos debates conseguiu enfrentar a estratégia circense do republicano, que vinha se dando bem na veia da chacota, do moralismo e das teorias conspiratórias. J. D. Vance, candidato a vice na chapa de Trump, também não tem agregado muito; ele foi escanteado pela campanha e já havia comparado, no passado, Trump a Hitler. “Casaca virada” nem sempre cai bem. Contudo, o certame está longe de ser resolvido. Será preciso vender aos Estados “neutros” a ideia de uma mulher negra como comandante em chefe. Tarefa dificílima.
Em matéria de política externa, em um mundo tensionado por conflitos “quentes” e “frios”, Harris assume a postura beligerante dos seus predecessores democratas. A propaganda republicana, que pinta os progressistas como fracos, globalistas, entreguistas e moralmente degenerados, acirra muito a escalada nacionalista e militarista em administrações democratas.
Kamala Harris também aposta em uma fórmula cinematográfica “CIA versus KGB”, em busca de aprovação popular e demonstração de força. Têm muito a perder as soluções diplomáticas. Dado o histórico, a contagem de corpos, presumidos efeitos colaterais, só tende a aumentar.
O dia das eleições nos EUA, 5 de novembro, está tão perto e tão longe. Manter a empolgação do público e romper a bolha progressista é o grande desafio de Kamala Harris rumo à Casa Branca. Donald Trump, para além do voto conservador, já foi capaz de capturar, uma vez, o voto dos trabalhadores e de setores da sociedade que votavam nos democratas há décadas. Basta repetir a dose.
Caminho embaralhado
O caminho, que parecia desobstruído com Biden, trocando Zelensky por Putin, foi embaralhado com a frente ampla que cerca a vice-presidente, reforçada pelo colega de chapa, o governador, soldado e coach (nesse caso, esportivo, e não de empreendedorismo) Tim Walz, que é a imagem quintessencial do americano médio, campeão de audiência.
Todavia, como já se passou na história recente do Grande Irmão, que segue empunhando seu porrete, o colégio eleitoral poderá contradizer o voto popular. As democracias continuam na corda bamba.
(*) Daniel Carvalho de Paula é professor do Centro de Ciências Sociais e Aplicadas da Universidade Presbiteriana Mackenzie