Em uma acalorada discussão na juventude, quando o pai avançou para agredir aquele que anos mais tarde se tornaria o homem mais poderoso da Argentina, Karine – irmã de Javier Milei, quase dois anos mais nova – colocou o próprio corpo entre os dois para impedir a agressão. “Eu vi uma luz descendo sobre ela. Um halo de luz protetor”, teria dito o mandatário sobre um dos inúmeros casos nunca confirmados publicamente pela reservada secretária geral da Presidência e que ilustram como funciona a umbilical relação fraterna – inclusive na política.
A meteórica carreira eleitoral do economista, a estrutura do governo, o círculo de poder presidencial e os planos para o futuro passam pela simbiose entre “o leão” – como o presidente se notabilizou na campanha – e “o chefe”. A alcunha é assim mesmo, no masculino, para que ninguém confunda Karine Elizabeth Milei, 52, com “a chefe”, como a ex-presidente Cristina Kirchner ficou conhecida nos 20 anos em que o kirchnerismo comandou o país.
Karine faz jus ao título de “chefe”. Ela comanda com mão de ferro a agenda do presidente argentino, quem pode e quem não pode entrevistá-lo, quem faz parte do núcleo mais próximo do presidente. Ela orienta o irmão sobre como se comportar em público e quais alianças fazer. Isso, para que Javier Milei se concentre nos planos da reforma ultraliberal para tirar a Argentina da crise econômica que se arrasta quase ininterruptamente desde a década de 1970 e que levou a uma hiperdesvalorização de 1.170,79% do peso em quatro anos.
Ela tem o apetite e o estômago para as atividades mais ferozes da política, para as quais o irmão tem assumida inapetência desde a curta passagem como deputado da Nação Argentina por Buenos Aires, entre 2021 e 2023. Atribui-se a Karine a ideia de sortear o salário parlamentar de Javier Milei – que um dos primeiros ganhadores, um militante kirchnerista, usou para pagar dívidas. É dela também a estratégia das “aulas públicas de economia”, que garantiram familiaridade do povo com a receita liberal contra a crise. Assim como a costura que levou o La Libertad Avanza à liderança das primárias de 2023. Não sem motivo, foi Karine quem esteve no carro oficial e conduziu o então recém-eleito mandatário à varanda da Casa Rosada no dia da posse. E, bem mais recentemente, ao centro de convenções onde ocorreu o encontro de cúpula dos líderes do G20, no Rio de Janeiro.
“Você sempre tem alguém a quem se reportar. No meu caso, eu me reporto à minha irmã”, afirmou o próprio Javier Milei ao canal de TV a cabo LN, em 2022. Tal como na narrativa da briga com o pai, Karine é conselheira e escudo protetor para o irmão não ter que se preocupar com outra coisa além da solução da crise econômica e da exposição midiática, para as quais o irmão tem talento inato e que garantem índices de popularidade de 53% (pesquisa Isasi/Burman, novembro de 2024).
Karine é voraz autodidata do poder político. Não se tem notícias de que ela tenha tido atividade partidária antes da campanha parlamentar do irmão, em 2020. Formada em relações públicas, foi proprietária de uma empresa de pneus e confeiteira.
Confrontar “o chefe” é um risco. Algo que a vice-presidente Victoria Villarruel aprendeu de forma dura. De atrito em atrito com o mandatário desde que perdeu o controle da pasta da Defesa antes mesmo da posse, a conservadora de família militar Villarruel saiu em defesa dos jogadores da seleção argentina, quando entoaram cânticos racistas contra a seleção francesa, em julho de 2024. Pouco afeita aos holofotes, Karine teve que ir a público e se desculpar com o governo Macron no lugar da vice. Assim, não sobrou qualquer reserva de simpatia a Villarruel quando esta visitou na Espanha Maria Estela Martinez de Perón, a ex-presidente exilada da Argentina e segunda mulher de Domingos Perón – icônico líder populista que governou o país em diversos momentos nas décadas de 1940, 1950 e 1970, criando o peronismo, movimento do qual o kirchnerismo é a vertente mais à esquerda. Além de desautorizada publicamente por Javier Milei, a vice-presidente foi classificada como membro da “casta” – tratamento dado tanto à esquerda quanto a qualquer um que priorize privilégios ao país.
Desde a posse, Karine tem acumulado cada vez mais poder. Trouxe para o guarda-chuva da Secretaria Geral a pasta da Cultura (que estava sob o Ministério do Capital Humano), por promover “valores, tradições e conhecimento”. Assim como passou a controlar a Fundação Argentina para a Promoção do Investimento e Comércio, tirada das mãos da ex-ministra das Relações Exteriores, Diana Mondino. Sem falar na sua nomeação à presidência do movimento La Libertad Avanza, conduzindo pessoalmente as caravanas para instalação de diretórios formais em todos os 24 distritos argentinos antes das eleições parlamentares de 2025. E assim “o chefe” coloca-se como barreira entre o irmão e as ameaças no caminho para perpetuação do legado de Milei para além da próxima disputa presidencial, em 2027, assumindo, mais uma vez, o papel de halo protetor.
(*) Frederico Duboc é editor de Opinião e mestre em relações internacionais pela PUC Minas