Mariana Cotta
Advogada, pós-graduada em penal e processo penal pela Escola Paulista de Direito
A frase sexista e atentatória a dignidade das mulheres “Mulheres estão loucas atrás de homens” proferida por um desembargador em uma sessão há alguns meses no Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR), que analisava um caso de assédio contra uma criança de 12 anos, escancara problemas enraizados em nossa sociedade como o machismo estrutural, a cultura discriminatória de séculos passados ainda arraigada nas entranhas do nosso Brasil varonil, a cultura da resignação e a seletividade de um sistema penal e legislativo direcionado por um simbolismo extremo e/ou ditames econômico-financeiros.
Alguns irão discordar dizendo que tivemos diversas mudanças legislativas para a proteção de pessoas com maior vulnerabilidade, como é o caso da mulher, quando fora aprovada a Lei Maria da Penha, a punição ao feminicídio, ao dano emocional à mulher, bem como adequações aos anteriormente chamados crimes contra os costumes, os quais retratavam a mulher como um sujeito de direitos com capacidade reduzida ou diminuída. Sem dúvida, tais alterações fizeram evoluir nossa legislação para garantir os direitos das mulheres, mas “pobre” de quem acha que a legislação, por si só, muda comportamentos nada fáceis de serem combatidos.
Os números mostram que no Brasil tivemos um estupro a cada 10 minutos e um feminicídio a cada 7 horas em 2022, sendo que mais de 100 mil meninas e mulheres sofreram violência sexual entre março de 2023 e junho de 2024, segundo levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Vale destacar que esses números são muito maiores na prática, já que as chamadas cifras ocultas da criminalidade têm abrigo certo nos crimes contra mulheres, isto é, a diferença entre os crimes cometidos no quotidiano e os que são levados ao conhecimento das autoridades policiais é enorme, formando o que se denomina taxa de atrição.
Portanto, muitas mulheres que sofrem este tipo de crime não procuram as autoridades policiais, em virtude da cultura da resignação, isto é, por diversos motivos como medo, pressão social, vergonha, domínio estrutural e familiar, cultura do suportar, dentre outros, fazem com que elas se mantenham inertes diante dos fatos criminosos. E nós todos somos responsáveis por isso, já que transpassamos a cada geração comportamentos como o incentivo à síndrome de Barbie que preconiza a coisificação da mulher desde sua infância, como objeto de manipulação e, mais tarde, de desejo na fase adulta, estimulando a criação de um inconsciente coletivo da mulher perfeita, padronizada, pronta para servir, o que retira seu caráter de autonomia e deturpa seu papel na sociedade.
A mudança deste cenário perpassa por diversos fatores como aumento da representatividade eleitoral ( a população brasileira tem 52,5% de mulheres, mas elas ocupam apenas 15% das cadeiras na Câmara dos Deputados e 14% no Senado), diminuição da seletividade na política criminal e legislativa de combate aos crimes contra as mulheres, criação de ambientes incentivadores e acolhedores para relatos de violência e outros crimes, educação para a cidadania como estímulo ao esfacelamento da síndrome de Barbie, proteção efetiva para as vítimas, desenvolvimento de programas de prevenção vitimaria com identificação dos grupos mais vulneráveis, estímulos à diminuição da vitimização com busca da reinserção da vítima na sociedade e, por óbvio, a busca incessante da quebra da cultura da resignação.
Podemos começar fazendo nossa mea culpa nesse processo, acabando com essa submissão cultural e falta de espaço decisório, já que as soluções de respeito e dignidade da mulher não são nem um pouco fáceis quando temos em um país um desembargador falando algo que nem em uma mesa de bar,seria aceitável tratando se de uma menina de 12 anos. Que seja cientificado, ainda que tardiamente, ao nobre desembargador e a todos aqueles que enxergam as mulheres como ele, que a mulher, parafraseando Renato Russo, “é só dela, só dela e não de quem quiser”