Caroline Rangel é advogada criminalista com pós-graduação em ciências penais

Temos acompanhado no Brasil um crescimento expressivo do número de denúncias de crimes sexuais contra crianças e adolescentes. Dados da Ouvidoria do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) apontam um aumento de 22,6% nas denúncias em 2024, totalizando quase 290 mil relatos. Esse cenário preocupante motivou a Comissão de Direitos Humanos do Senado a realizar uma série de debates sobre o tema. O crescimento das denúncias traz uma reflexão incômoda, mas necessária: o que aumentou foi a violência contra crianças e adolescentes ou o número de denúncias porque há uma gama maior de canais e de pessoas discutindo o assunto?

Não há resposta simples para essa questão. Ao mesmo tempo em que o aumento da conscientização e dos canais de denúncia é positivo, é preciso atenção ao modo como o sistema penal tem sido mobilizado em determinados contextos. Em especial, há casos em que acusações de abuso sexual surgem durante litígios familiares, como separações e disputas pela guarda dos filhos. Nessas situações, o sistema de justiça pode, inadvertidamente, ser usado como ferramenta de vingança ou estratégia de exclusão do outro genitor.

O impacto de uma acusação sexual é devastador, mesmo antes de qualquer apuração concreta. O investigado pode ser afastado judicialmente da criança, perder o emprego, sofrer constrangimentos públicos e carregar um estigma social quase impossível de reverter. A simples acusação, ainda que infundada, provoca efeitos profundos e, muitas vezes, irreversíveis.

A produção de provas é o maior desafio. Crimes sexuais, sobretudo em ambiente doméstico, raramente contam com testemunhas diretas. A palavra da vítima – especialmente quando criança – é fundamental, mas precisa ser colhida com métodos adequados, sem induções ou contaminações emocionais. Em litígios familiares intensos, há risco de manipulação da narrativa infantil por parte de adultos com interesses próprios. Por isso, o sistema precisa agir com sensibilidade, mas também com rigor técnico.

A atuação da defesa técnica se torna indispensável. Garantias como o contraditório, a ampla defesa e a presunção de inocência são pilares do processo penal, que não podem ser relativizados sob pena de injustiças gravíssimas. Proteger a criança não significa desproteger o acusado, especialmente quando há indícios de uso instrumental da acusação com fins de retaliação.

Isso não significa negar a gravidade do abuso sexual infantil. Tanto é assim que maio foi instituído como o mês de enfrentamento desse tipo de crime, sendo o dia 18 escolhido como marco nacional em memória do caso Araceli, menina de 8 anos sequestrada e morta com sinais de violência sexual em 1973. A história de Araceli mobilizou o país e levou à criação da Lei 9.970/2000, reforçada pela Lei 14.432/2022, que estabeleceu todo mês de maio como período de conscientização.

Fica claro que o sistema de justiça precisa equilibrar dois imperativos igualmente relevantes: acolher e proteger as vítimas de abuso com eficiência e humanidade e, ao mesmo tempo, evitar que acusações falsas sejam utilizadas como armas em disputas familiares. Só assim será possível preservar a integridade do processo penal, garantir justiça às vítimas reais e impedir que o próprio sistema seja capturado por interesses que nada têm a ver com a proteção da infância.