Ewerton Martins Ribeiro é escritor, mestre e doutor em literatura, servidor público federal e jornalista da UFMG
Desde a fundação de Belo Horizonte, em 1897, a destinação a ser dada ao lixo sempre foi um desafio para a nova capital de Minas. Belo Horizonte queria ser um exemplo para o mundo, mas suas modernas pretensões sanitárias conflitavam com seu espírito tacanho e provinciano, incapaz da largueza de um pensamento verdadeiramente inovador, ambientalmente falando.
Dado esse contexto, talvez fosse até previsível que a cidade fosse se deixando seduzir por soluções cosméticas — essas que, apresentadas uma após outra sob a máscara da novidade, apenas fazem a jardinagem do dossel dos problemas citadinos sem nunca escavarem suas raízes. Foi o que ocorreu ao longo do último século, trajetória que culminou na fundação, em 1975, do aterro sanitário de Belo Horizonte, a partir da desapropriação de uma série de terrenos situados nas fronteiras da região Noroeste da cidade, às margens da BR-040, no intervalo entre bairros como Glória, Pindorama e Califórnia.
Passei os últimos anos pesquisando a história do aterro e de sua região para a escrita de "Pindorama", livro que será publicado neste ano pela coleção BH. A cidade de cada um, que completou duas décadas no fim do ano passado sob a batuta dos jornalistas José Eduardo Gonçalves e Sílvia Rubião. Como o livro se concentra no bairro, aproveitei os achados colaterais dessa pesquisa para contar, sob o mote do aniversário de 50 anos do aterro, a história desse decisivo e controverso equipamento municipal.
Meu objetivo com esta série de artigos é recolocar a discussão sobre o que se situa no pano de fundo dessas soluções que, ainda hoje seduzidos pela burrice do positivismo moderno, seguimos encontrando para o problema do lixo nas grandes metrópoles. Urge fazermos algo, antes que seja tarde demais.
Vivemos na crença de que algum dia vai haver solução tecnicista capaz de eliminar de vez os efeitos da produção de lixo sobre a vida de cada um de nós. Spoiler: não vai. Para ser solução, ela precisará se concentrar na eliminação da produção de lixo, em vez de no lixo já gerado. Vamos juntos nessa conversa?
A gestão do lixo em BH: uma genealogia
Nos primeiros anos da nova capital de Minas, na alvorada do século XX, os resíduos urbanos eram queimados ao ar livre, com o auxílio de querosene. Por volta de 1914, como o excesso de lixo produzido já começasse a tornar inviável aquela solução, a prefeitura adquiriu um forno de incineração, instalado no Parque Municipal. Em 1928, esse forno foi então transferido para fora da zona urbana, no primeiro movimento feito pela urbe de empurrar seus detritos (e o processamento que seria feito deles) para atrás do biombo virtual que, contornando-a, a definia e preservava da visão crua da verdadeira face de sua modernidade.
Em 1930, na tentativa de acompanhar o desenvolvimento da cidade, esse forno foi desativado, e Belo Horizonte começou a adotar um sistema de celas de fermentação do lixo, dispostas em diferentes pontos de sua zona suburbana. Nelas, na perspectiva da compostagem, tentava-se transformar o material orgânico do lixo em adubo, a ser utilizado pela prefeitura e pela população. Contudo, a cidade seguia crescendo em ritmo inesperado, e toda nova solução aventada pelo progresso tecnológico acabava sendo muito rapidamente superada pelos desdobramentos do éthos da capital, em sua vocação para o consumo esbanjador, tão próprio da nova cultura consumista que emergia no Brasil e no mundo. Logo a solução oferecida pelas celas também se revelava insuficiente para dar conta do vulto da produção de lixo da capital, e uma nova estratégia precisava ser traçada.
Sem solução, o problema foi sendo ignorado até que, em 1968, as celas de fermentação foram finalmente desativadas, já que sua capacidade, em face da produção de lixo da cidade, já havia se tornado irrisória. Porém, mesmo tanto tempo depois, a modernidade ainda não sabia que nova promessa oferecer à cidade de solução “ainda mais eficiente” para o problema do lixo. Perdidos nesse hiato positivista, nossos gestores tiveram então a incrível ideia... de passar a desovar os resíduos da cidade em algum vazadouro improvisado.
Ora, onde se poderia improvisar algo assim? Em algum morro dos nossos subúrbios, é claro. Na ocasião, o local escolhido foi Morro das Pedras, na região Oeste da cidade — na época, um dos territórios periféricos mais densamente ocupados de Belo Horizonte, onde viviam milhares de desvalidos. Inaugurada nesses fins de anos 1960, a “boca de lixo” do Morro das Pedras ficaria conhecida por se tornar o cenário de algumas das mais terríveis tragédias da história média da nossa capital.
Quando o vazadouro do Morro das Pedras começou, muitos novos desvalidos foram se instalar no entorno de sua bomba de insalubridade, e várias novas favelas foram surgindo, cada uma em situação mais degradante que a outra — algumas erguidas realmente dentro da boca de lixo. Logo já eram da ordem de centenas as pessoas que viviam em meio àquelas montanhas de detritos, cujos restos reviravam em busca de alimento e da possibilidade de fazer algum dinheiro com a venda do que encontravam.
No entanto, mesmo aquela apelativa alternativa ainda não era suficiente para a sofreguidão produtivista da capital, e várias outras bocas de lixo menores iam surgindo pela cidade. Elas iam se espalhando por ruas e lotes vagos, quando não córregos — sempre em nossas periferias, é claro.
Às vezes, essas bocas se formavam lentamente; em outras, subiam de uma hora para outra, sem que o poder público nem mesmo conseguisse acompanhar esses processos, como fazem saber reportagens antigas e documentos históricos. Bem, não preciso dizer que as comunidades mais afetadas pelo problema eram, como nunca deixaram de ser, as formadas pelas pessoas mais pobres e desassistidas da capital, nas margens da cidade.
Em uma cultura que já se revelava a praxe, essas pessoas ficavam responsáveis por processar não apenas o próprio lixo, mas também tudo o que lhes era empurrado desde o centro da cidade, na típica força centrífuga com que a capital sempre lidou com seus rejeitos de toda ordem. É uma força que distingue dois entendimentos do que seja a cidade — duas cidades mutuamente excludentes, a que compra e a que paga. E a produção de lixo seguia crescendo.
E foi aí que aconteceu. Em 1971 e em 1972, no período das chuvas, dois grandes deslizamentos na boca de lixo do Morro das Pedras soterraram um sem-fim de barracos que haviam sido montados em meio ao lixo. Dezenas de pessoas morreram, expondo a precariedade da cultura de gestão de resíduos da capital.
A repercussão negativa desses acidentes (nem mesmo foi possível recuperar todos os corpos: alguns se perderam para sempre, em meio ao lixo, sem nunca terem recebido as honras fúnebres) forçou as autoridades a tomar providência sobre o assunto. Naturalmente, a providência se focaria novamente apenas na parte do problema relacionada à gestão do lixo, ignorando a parte relacionada ao descontrolado crescimento da sua produção.
Remonta a essa época o germe da ideia de se construir um aterro sanitário na capital. O empreendimento seria levado a cabo nos três anos seguintes.
A história do aterro sanitário, o nosso ‘lixão’
Inaugurado há exatos 50 anos, no dia 17 de fevereiro de 1975, o aterro sanitário de Belo Horizonte foi viabilizado pela desapropriação de uma série de terrenos situados na região Noroeste de Belo Horizonte, quase todos de diferentes descendentes da família Camargos. Foram quatro grupos de terrenos: terrenos da fazenda das Taiobas (ou fazenda Taiobeiras, como também é chamada em alguns documentos históricos) e da fazenda dos Coqueiros, na vasta região em que hoje o equipamento sanitário faz fronteira com o bairro Pindorama, e duas áreas menores, denominadas Matas e Licuri.
Matas era o nome de uma faixa de terra situada no trecho do aterro que faz hoje fronteira com o Conjunto Dom Bosco e com a Vila Califórnia. Licuri é a região onde ficam as estruturas administrativas do aterro, na altura da saída que o terreno tem para a BR-040. Nos anos que se seguiram, o lugar, cuja área totaliza hoje cerca de 115 hectares, começou a funcionar sob grandes expectativas, na esperança de que o problema crônico da capital com seu lixo pudesse ser finalmente resolvido.
Na época, já se encaminhando para os dois milhões de habitantes, a população de Belo Horizonte produzia algo em torno de 1,5 mil toneladas de lixo por dia. Desse montante, a Superintendência de Limpeza Urbana (SLU), criada apenas dois anos antes, na esteira daquelas tragédias ocorridas no Morro das Pedras, ainda só conseguia recolher cerca de um quarto, e mesmo para esse volume já enfrentava dificuldades para dar a devida destinação.
O desafio era grande, mas a novidade vinha a calhar, como não se furtavam de celebrar os jornais do período. Vinha mesmo, cara-pálida? A calhar para quem?
Apesar de estar praticamente na fronteira com Contagem, nos limites da região Noroeste de Belo Horizonte, a área destinada ao aterro ficava a apenas dez quilômetros do marco central da urbanidade mineira, a Praça Sete. A despeito disso, nossa esfera pública parece não ter se interessado por discutir os impactos que a construção de um “lixão”, tão achegado ao núcleo urbano da metrópole, teria sobre a vida de sua população mais pobre — particularmente, aquela que, à moda do que houvera no Morro das Pedras, ganharia o aterro como vizinho ou que se tornaria vizinha do aterro, migrando para as suas imediações, aproveitando a relativa facilidade de acesso. Ao contrário, os jornais se concentraram em dar voz à euforia otimista que, na época, o discurso oficial fazia reverberar.
Três anos após a inauguração do equipamento, uma extensa matéria do "Jornal de Casa", por exemplo, celebrava-o como “um dos mais perfeitos aterros sanitários do país” e listava o sem-fim de benesses que ele traria para a sociedade montanhesa — tudo sem ponderar esses argumentos com uma reflexão crítica sobre os eventuais impactos sociais da novidade.
Edição do "Jornal de Casa", de 1978, sobre o novo aterro em Belo Horizonte. Foto Ewerton Martins Ribeiro/Arquivo Pessoal
Em suma, faltava revestir o pensamento tecnicista com uma reflexão humanista; faltava dizer, como costuma ser a praxe até hoje em certo mainstream jornalístico, de qual sociedade se estava falando, quando se falava em benesses para a cidade: se da minoritária sociedade dos “metropolitanos”, de poder majoritário, ou da majoritária sociedade dos “periféricos”, que quase nunca pode contar com poder nenhum. Afinal, o que é benesse para uma quase sempre é prejuízo para a outra. Então há que saber distinguir, diferenciar.
Não fosse esse curto raio de afastamento entre o aterro e o centro urbano, mesmo naquela época os limites da regional Noroeste já pareciam ser uma opção questionável para a construção do aterro também por uma segunda razão. Nas duas décadas anteriores a 1975, como fazem saber os dados oficiais da Prefeitura de Belo Horizonte, a maior expansão da mancha urbana de Belo Horizonte havia se dado justamente nas direções oeste e norte. Em um caso, por causa da implantação da Cidade Industrial na fronteira da cidade, já em Contagem. Em outro, por causa da construção da Pampulha, no início da região Norte da capital mineira.
Além disso, houve a abertura de três grandes avenidas (Amazonas, Antônio Carlos e Via Expressa) para dar acesso ao crescente fluxo desses vetores. Em um cenário como esse, era de se prever que a região escolhida alcançaria com particular rapidez a sua conurbação, e o seu entorno seria muito rapidamente ocupado, sem haver tempo para um devido tratamento urbanístico do território pelo poder público.
Foi o que de fato ocorreu logo nos anos seguintes. Conto essa história amanhã, no segundo dos três artigos desta série sobre o aterro.
2º artigo da série: Da conurbação à emergência da favela: o caso do Pindorama
3º artigo da série: Aterro de Belo Horizonte: o eterno adiamento do fim