Laura Brito é advogada especialista em direito de família e das sucessões
Deparei-me estes dias com o documentário “O Nascimento de H. Teixeira”, de Roberta Canuto. Um filme bonito, que tem a seguinte passagem:
“E aí, de repente, eu vi que eu tinha um nome, inclusive um sobrenome, espantoso: Buarque de Hollanda. Prima do Chico Buarque de Hollanda. (...) Isso é do meu marido, isso não é meu. E o sobrenome do meu pai também não é meu. Você tem sempre um homem para dar o sobrenome. Aí eu falei: vou mudar meu nome para Helô Teixeira, que é o nome da minha mãe. (...) Não é pouca, não. É muita coisa. Eu passo a ser eu mesma”.
Heloísa Teixeira faleceu em março deste ano, aos 85 anos. Heloísa era um símbolo da construção do feminismo no Brasil e imortal da Academia Brasileira de Letras. Apesar de sua trajetória brilhante, de ter sido responsável por desencastelar o conhecimento, o seu obituário em um grande jornal foi: “Morre Heloísa Teixeira, ex-Buarque de Hollanda”.
A história do sobrenome dessa intelectual é um excelente ponto de partida para compreender a importância simbólica do nome e as mudanças pelas quais a legislação passou.
Heloísa Teixeira foi casada com o advogado e galerista Luiz Buarque de Hollanda, primo de Chico Buarque. Com o casamento, ocorrido em meados do século XX, ela passou a ser identificada como Heloísa Buarque de Hollanda.
Vale anotar que até 1977 a adoção do sobrenome do cônjuge pela esposa era obrigatória. Foi com a Lei do Divórcio, que alterou o Código Civil de 1916, que a adoção passou a ser facultativa, ainda que muito tradicional.
Heloísa se separou depois de dez anos, mas continuou a usar seu sobrenome. Apesar de depois ter vivido por décadas com o fotógrafo João Carlos Horta, a despeito de sua carreira nunca ter dependido de seus companheiros, toda a sua trajetória acadêmica e ativista foi assinada por Heloísa Buarque de Hollanda.
Mas, aos 83 anos, em 2023, Heloísa decidiu resgatar sua família de origem, honrar sua mãe e desconectar sua existência do sobrenome da família de seu primeiro marido. Com isso, nos dias que antecederam sua posse na ABL, em decisão simbólica sobre sua autonomia, a prestigiosa professora da UFRJ passou a assinar como Heloísa Teixeira. Assim foi imortalizada.
Entre uma imposição de adoção do sobrenome do marido até 1977 e a possibilidade de trocar de sobrenome quando se quer, muita coisa mudou na lei e na cultura.
Se a partir de 1977 passou a ser facultativo para a noiva adotar o sobrenome do futuro marido, foi em 2003, com o atual Código Civil, que a adoção de sobrenome no casamento passou a ser uma possibilidade recíproca.
Ainda assim, estava preservada uma lógica de imutabilidade do sobrenome. Ou seja, adotado o sobrenome no casamento, a pessoa seguiria com ele até eventual divórcio. E a decisão que tomasse no divórcio – manter ou tirar – também restaria definitiva.
Até recentemente, o nome, constituído de prenome e sobrenome, trazia uma lógica de inalterabilidade, a fim de garantir segurança jurídica na identificação das pessoas. Contudo, no cenário atual, em que todos temos CPF e dados biométricos, o nome, efetivamente, pode ser colocado na posição de identidade e personalidade, tirando o holofote da proteção de terceiros e jogando luz na própria pessoa.
Em 2022, então, a Lei 14.382 alterou a Lei de Registros Públicos, de 1973, para reconhecer que a alteração posterior de sobrenomes poderá ser requerida pessoalmente no cartório, com a apresentação de certidões e de documentos necessários, e será averbada nos assentos de nascimento e casamento, independentemente de autorização judicial. Nesses pedidos de alteração feitos diretamente no cartório, é possível fazer a inclusão de sobrenomes familiares; inclusão ou exclusão de sobrenome do cônjuge, na constância do casamento ou após a dissolução da sociedade conjugal; e inclusão e exclusão de sobrenomes em razão de alteração das relações de filiação.
Foi a partir disso que Heloísa, a imortal, decidiu (re)nascer Helô Teixeira. Ainda assim, teve em seu obituário o sobrenome que ela acabara de matar.