Lucas Ruiz Balconi é advogado, doutor em direito pela
USP e especialista em direito digital
O recente caso envolvendo o influenciador Hytalo Santos, acusado por Felca de produzir conteúdo supostamente voltado a pedófilos, reacende um debate urgente: como a arquitetura das redes sociais está contribuindo para a exposição e, pior, a erotização precoce de crianças e adolescentes na internet?
Não se trata aqui de julgar antecipadamente a culpabilidade de um sujeito específico, mas sim de analisar o ecossistema que permite (ou até incentiva) a produção e disseminação de conteúdos com alto grau de ambiguidade quanto à sua finalidade e impacto.
O ambiente digital contemporâneo é marcado por uma lógica implacável: a da economia da atenção. Plataformas como TikTok, Instagram e YouTube operam com base em algoritmos cujo objetivo central não é promover a segurança, tampouco a educação ou o bem-estar, mas reter o usuário o maior tempo possível, otimizando o engajamento e a rentabilidade. Quando essa lógica é aplicada a públicos vulneráveis, como crianças e adolescentes, os riscos se multiplicam.
A exposição precoce, muitas vezes acompanhada da adultização de comportamentos, não é um efeito colateral acidental. É consequência de ao menos quatro fatores estruturais:
1. Algoritmos que priorizam engajamento, não proteção. Os sistemas de recomendação que definem o que aparece no feed do usuário são treinados para captar e manter a atenção. No caso de crianças, isso pode significar a migração rápida de conteúdos lúdicos para vídeos com conotações sensuais, desafios perigosos ou interações inadequadas. A falta de transparência algorítmica torna difícil identificar (e responsabilizar) os critérios que regem essa entrega.
2. Incentivos econômicos ao “sharenting” e à performance infantil. Muitos criadores de conteúdo, inclusive pais, transformam seus filhos em protagonistas digitais. Essa prática, conhecida como “sharenting”, em alguns casos atravessa fronteiras éticas e legais, ao tratar a imagem da criança como ativo de capital simbólico e econômico. É nesse contexto que se insere a questão da erotização infantil, ainda que de forma dissimulada, como instrumento de apelo visual e aumento de audiência.
3. Ausência de fronteiras claras na experiência online. Enquanto o mundo físico oferece barreiras razoáveis entre espaços infantis e adultos, o digital dissolve essas separações. O feed de uma criança pode intercalar vídeos infantis com conteúdos violentos, hipersexualizados ou mesmo criminosos, sem qualquer mediação. A experiência online, fluida e não hierarquizada, favorece essa contaminação de ambientes.
4. A pedagogia da performance. Crianças e adolescentes são socializados pelas redes a interpretar a vida como uma sequência de performances voltadas a uma audiência anônima. O desejo de reconhecimento e validação externa reduz sua capacidade de discernimento e aumenta a vulnerabilidade a relações abusivas ou manipulações emocionais.
Caminhos possíveis: governança digital e responsabilização jurídica. A resposta a esse cenário não pode ser exclusivamente técnica, tampouco moralista. Ela exige um modelo de governança digital familiar, combinado com regulação sistêmica do ambiente digital. No âmbito doméstico, é necessário que pais e responsáveis assumam uma postura ativa, adotando medidas como:
– Configuração de controles parentais e uso de plataformas em versão “kids”;
– Estímulo ao letramento midiático, ensinando a criança a questionar e compreender o conteúdo que ela consome;
– Definição de uma política consciente de exposição, considerando a imagem da criança um dado pessoal sensível, protegido pelo marco legal brasileiro.
No plano jurídico, a questão é ainda mais desafiadora. Embora o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o Marco Civil da Internet e a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) ofereçam bases importantes para a proteção dos menores, a aplicação prática dessas normas às dinâmicas algorítmicas e à monetização de conteúdo ainda é incipiente.
É urgente avançar na responsabilização de plataformas que se omitem em coibir práticas evidentemente nocivas, bem como regulamentar a produção de conteúdo com participação de crianças, especialmente quando há viés econômico envolvido.
Também é preciso discutir a responsabilização de criadores de conteúdo que, por ação ou omissão, contribuem para a disseminação de material com conotação ambígua e risco potencial. A exposição precoce de crianças na internet é um problema jurídico, ético e social. É, sobretudo, um sintoma de um modelo digital que ainda privilegia o lucro à revelia da dignidade humana.