Leônidas Oliveira é secretário de Estado de Cultura e Turismo de Minas Gerais
A história da santidade, durante longos séculos, foi contada quase exclusivamente a partir da Europa. A hagiografia oficial exaltou papas, doutores, reis piedosos, religiosos fundadores e mártires dos primeiros séculos. Os altares se encheram de nomes veneráveis: de Santo Agostinho a Santo Antônio, de Perpétua e Felicidade a Tomás de Aquino. Enquanto isso, a América Latina – convertida à fé desde o século XVI e hoje coração pulsante do catolicismo mundial – permaneceu invisível.
Não éramos considerados santos; éramos apenas campo de missão. Esse eurocentrismo eclesial se sustentava numa visão hierárquica, na qual a santidade era fruto da cultura teológica e espiritual europeia, enquanto a América Latina figurava como periferia evangelizada. Não se tratava de ausência de santidade, mas de ausência de reconhecimento.
O resultado foi um longo silêncio. A maior região católica do planeta, que hoje concentra quase 50% dos fiéis, só começou a ver seus filhos reconhecidos no século XX. Foi preciso esperar trezentos anos para que Minas Gerais, o coração católico do Brasil, tivesse seus primeiros santos e beatos oficialmente proclamados.
Santidade vinda do povo
E quando eles vieram, não vieram das cátedras nem dos tronos. Vieram do povo. Nossa santidade é popular, negra, feminina, juvenil, missionária.
A Beata Nhá Chica (Francisca de Paula de Jesus), nascida em São João del-Rei e radicada em Baependi, filha de escravos e analfabeta, tornou-se a “mãe dos pobres”. Beatificada em 2013, sua vida é exemplo da fé que se faz pão repartido e oração cotidiana. Como escreveu Adélia Prado: “Fé é quando não se consegue ver, mas se acredita.” Nhá Chica acreditou contra todas as evidências e fez de sua pobreza uma riqueza para os outros.
O Beato Padre Victor (Francisco de Paula Victor), de Campanha e Três Pontas, também negro e filho de escrava, ousou tornar-se padre em meio ao preconceito racial do século XIX. Beatificado em 2015, tornou-se símbolo de resistência e perseverança. Sua festa reúne multidões, lembrando que a santidade também tem rosto negro.
Padre Eustáquio e Isabela Mrad
O Padre Eustáquio van Lieshout, missionário holandês, mas mineiro de coração, viveu em Patrocínio e Belo Horizonte. Conhecido por curas e caridade incansável, foi canonizado em 2022. Curiosamente, o primeiro santo de Minas não nasceu aqui, mas aqui enraizou sua missão, revelando como a santidade pode ser transplantada e se tornar da terra.
No século XX, a santidade também assumiu o rosto da juventude. Isabel Cristina Mrad Campos, de Barbacena, assassinada em 1982 ao resistir a uma tentativa de violência sexual, foi beatificada em 2022. Tornou-se ícone da juventude que não se curva diante da violência. Seu martírio recorda Adélia Prado: “De vez em quando Deus me tira a poesia. Olho pedra, vejo pedra mesmo.” Isabel enfrentou a pedra da violência e a transformou em eternidade.
Há ainda os que aguardam reconhecimento. O Padre Libério Rodrigues Moreira, de Leandro Ferreira, “o padre do povo”, evangelizava pedalando sua bicicleta, mais pela amizade que pela eloquência. Declarado Venerável em 2024 pelo Papa Francisco, está em processo avançado de beatificação. Seu túmulo é hoje lugar de romaria, testemunho de uma santidade já viva no coração do povo.
E a Venerável Benigna Victima de Jesus, carmelita de Diamantina, fez do silêncio e da oração um testemunho de fé no fim do século XIX.
Grande virada
Por que só no século XX? Porque a Igreja precisou passar pela grande virada do Concílio Vaticano II (1962–65), quando João XXIII convocou uma “Igreja dos pobres” e Paulo VI afirmou que a Igreja devia “respirar com os pulmões do mundo inteiro”. Só então Roma abriu os olhos para as periferias, e a santidade começou a ser reconhecida também fora da Europa. Até então, a América Latina era invisível na memória oficial da Igreja.
Minas é espelho desse processo. Sua santidade nasce das margens: da mulher negra, do padre pobre, do missionário que se fez povo, da jovem universitária, da monja enclausurada. Não é santidade coroada, mas santidade encarnada: santidade que nasce do chão e sobe às montanhas.
Guimarães Rosa intuía: “O mais importante e bonito do mundo é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas.” A santidade mineira também não está terminada: continua a florescer, a surpreender, a multiplicar-se.
Exclusão histórica
O atraso em reconhecer a santidade latino-americana é também sintoma de uma exclusão histórica. Mas, se Roma demorou séculos para olhar para nós, foi porque não sabia que a santidade também fala com sotaque mineiro, caminha em pés descalços, reza terço de contas gastas, sobe ladeiras de barro e canta nas festas de Rosário.
Hoje, enfim, essa santidade se faz universal. E Minas é, de fato, terra de santos.