A raiva domina hoje a cena política. Não é nada fácil explicá-la, leitor, nem chegar a essa triste conclusão. Ela não é nova, mas o sentimento que hoje provoca nunca foi tão dominante em nosso país. O mesmo que ódio, ira e rancor, a raiva também é uma doença causada por vírus que acomete o sistema nervoso de mamíferos. No homem, ela tem um longo período de incubação. É adquirida a partir de mordidas de animal portador do vírus: cachorro, gato, morcego etc. Apossou-se, agora, dos que se decidiram a apoiar um governante que a nutre todo dia e que busca depressa mudar o seu perfil inventado com êxito durante o período eleitoral, alinhando-se ao seu antigo ninho. Uma tarefa difícil.
Até parece que nenhum integrante do movimento bolsonarista – que nega o respeito ao meio ambiente, agride as minorias, prega o culto às armas, desafia a ciência, demonstra horror à cultura e considera a pandemia uma gripezinha – percebe que seu líder não só já faltou ao decoro, mas desafiou as instituições democráticas ao incorrer em crimes de responsabilidade. Nem por isso deixa de contar com o apoio de grande parte de eleitores que o alçaram à Presidência em 2018. São eles que o incentivam a pedir a Deus para ser reeleito, como disse em discurso, na academia onde se formou, aos futuros oficiais de 2023.
O mais novo crime de responsabilidade foi cometido quando o governo conseguiu, em acordo com a CBF, se apossar da TV Brasil (que o candidato Bolsonaro, por considerá-la um cabide de empregos, prometeu fechar) para transmitir, com exclusividade, o jogo entre Brasil e Peru, ocasião em que, além disso, a utilizou para divulgar sua propaganda. Por outro lado, nós erramos ao não cobrarmos do presidente do Congresso, Rodrigo Maia, que dê andamento aos vários pedidos de impeachment a ele dirigidos. Esse desinteresse permite a consolidação do “aparelhamento bolsonarista” e fragiliza a democracia.
O assunto merece ser alongado, mas estas linhas são escritas dois dias antes de serem publicadas, e não posso deixar de me referir, sobretudo, mesmo com atraso, ao que hoje já está definido pelo Senado Federal: a aprovação, por ampla maioria, do desembargador Kassio Nunes Marques, 48, para o Supremo Tribunal Federal (STF). Acusado de plágio e de adulteração em seu próprio currículo, Kassio permanecerá no STF por 27 anos. Por melhor que seja sua atuação na mais alta Corte de Justiça do país, jamais apagará a nódoa que carrega: trata-se de ministro que não atendeu às exigências para o exercício do cargo, contidas no artigo 101 da Constituição Federal de 1988: ser um cidadão de “notável saber jurídico” e de “reputação ilibada”. Ou somos nós que perdemos, definitivamente, a noção de ética? Que belo exemplo para os jovens!