Opinião

Abandono afetivo: cabe ao Poder Judiciário tutelar o afeto?

A questão do abandono afetivo de filhos pelos pais

Por Julio Braga
Publicado em 29 de junho de 2022 | 03:00
 
 
 
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Há dez anos, a Terceira Turma do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), por decisão não unânime, nos termos do voto da ministra Nancy Andrighi, condenou um pai ao pagamento de indenização por danos morais causados pelo abandono afetivo à sua filha. Segundo a ministra, não se trata de discutir o cabimento da responsabilidade civil no âmbito familiar nem de monetarizar os afetos. Do que se trata então?

Apesar de referir-se à possibilidade de o abandono advir tanto do pai quanto da mãe, a prática revela que o abandono é comumente protagonizado pelo pai. Muitos artigos jurídicos em defesa da reparação financeira em caso de abandono afetivo consideravam “o bolso a parte mais sensível do corpo humano” e entendiam que, arrancando do pai “a libra de carne” para pagar o seu débito junto ao filho, poderia reparar um dano. Juristas que sustentam o dever de convivência, mesmo inexistente o afeto, condenando quem não o manifesta, são os mesmos que defenderam a decretação do divórcio independentemente de culpa, diante da ausência de afeto.

Com a psicanálise, aprendemos que o elo afetivo não decorre de ato de vontade, imposição legal ou jurídica. Muitas são as causas inconscientes que podem levar ao abandono. Com o direito, sabemos que muitos são os fatores conscientes que podem levar um ente a abandonar seu filho, como a alienação parental e o afastamento deliberado promovido pelo outro da relação.

Apesar de essa tese se propor à defesa da dignidade da pessoa humana, ainda cabe indagar: seria possível conviver sem desejo? A comentada decisão se alinhou à sociedade atual em sua dificuldade de lidar com as dores. Absorvendo os traços do hiperconsumo, próprios do neoliberalismo, que tamponam a frustração, em que o afeto vira likes e moeda em relações cada vez mais contabilizadas a crédito e a débito, o direito vem ensejando intensa jurisdicionalização das relações em busca do ilusório estado de conforto.

Contudo, não há compensações pecuniárias, porque o afeto ou a sua falta é bem infungível ao dinheiro. Na maioria das vezes, pais ausentes sempre o foram, antes mesmo da separação de seus cônjuges.

Pus-me a estudar artigos e decisões judiciais sobre o tema, participei de um congresso do Ibdfam, em Belo Horizonte, mergulhei nos conceitos psicanalíticos de afeto, desejo e ética para compreender, agora sob uma nova ótica, o problema do abandono afetivo perante o Poder Judiciário.

Acredito que ninguém possa ser obrigado a amar alguém e que a falta não pode ser compensada por dinheiro. Creio na afirmação do sujeito, que multiplique sua potência de vida em direção à liberdade, através da mediação simbólica, tão cara à psicanálise, para onde caminha finalmente o direito dos novos tempos.

Julio Braga é advogado, psicanalista do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise do RJ

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