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Animismo e Brumadinho

Estabelecer relações diferentes com a natureza que nos circunda

Por Oscar Torretta
Publicado em 08 de abril de 2022 | 03:00
 
 
 
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O conceito de animismo tem origem remota. No entanto, tem a ver com os atuais e muito em voga conceitos filosóficos de pós-humano e transumano. A diferença entre eles não é totalmente clara, mas, para ambos, ao menos do ponto de vista antropológico, a centralidade do humano pode ser superada não apenas pelo impacto de novas tecnologias, mas também considerando-a parte integrante de um sistema mundo mais amplo, que inclua o ambiente natural, as plantas, os animais e os seres não humanos. Em síntese, por meio de uma ideia próxima da noção comum de animismo, ou seja, de que tudo é vivo – pelo menos, que mais coisas estão vivas além daquelas que um observador científico estaria disposto a conceder.

Vamos dar um passo atrás antes de voltar ao argumento. A primeira definição de animismo foi dada por sir Edward Burnett Tylor (1831-1917), um dos fundadores da antropologia, em seu livro “Primitive Culture” (1871). O período histórico é aquele definido como “evolucionismo cultural”, no qual se hipotetizava que os “animistas” compreendiam o mundo de forma infantil e com base de convicções geradas do seu subdesenvolvimento cognitivo (“Primitive Culture”, Vol. 1, página 285).

O desenvolvimento humano também era imaginado como uma pirâmide no topo da qual dominava o homem branco, de preferência do norte da Europa. Com o passar dos anos e dos acontecimentos, esgotada a ideia de uma suposta superioridade evolutiva, não teria permanecido mais que uma concepção básica do animismo, aquela relativa ao fato de que muito mais coisas do que se veem são vivas.

Sob várias formas, essa ideia teria se manifestado aos olhos dos antropólogos graças ao interesse deles pelas diferentes populações do mundo, sejam na Amazônia, na América do Norte – por exemplo, entre os Navajos ou os Inuits – ou nas ilhas Andamão, na Malásia, ou ainda, mais a leste, entre os Ainu, do Japão, e assim por diante. Sem esquecer que, mesmo na Europa, as mitologias bascas e pirenaicas falam, por exemplo, de uma época em que os animais também se comunicavam com os seres humanos, descrevendo como estes últimos podiam se esconder sob o disfarce de ursos. Em suma, um patrimônio humano comum que alguns grupos souberam preservar melhor do que outros. Entre estes, certamente, as populações indígenas. No campo antropológico, a questão de como estas últimas representam o mundo e os seres que o habitam teria permanecido intacta. O correlato dessa tese teria sido, porém, aquele de recolocar ao centro da discussão a clássica distinção dicotômica entre cultura e natureza e impor a ciência qual forma privilegiada para trazer clareza sobre essa bipartição. Não deixando de mencionar uma associada hipocrisia.

Se, por um lado, os chamados “indígenas” teriam sidos vistos com simpatia (“Nós podemos aprender muito com vocês...” é a frase mais frequentemente repetida), por outro lado, o animismo “deles” teria sido levado a sério até certo ponto apenas. Na verdade, não é de fato permitido influenciar minimamente “nossa” ciência. Somente “nós”, ou ao menos os “nossos” cientistas, são de fato capazes de conhecer a natureza como ela realmente é.

Mas essa suposta superioridade se demonstrou realmente?

Diante de tragédias como a de Brumadinho, a dúvida só aumenta. Morte, devastação, tristeza e precariedade... Não será que erramos em alguma coisa? Talvez tenhamos perdido a arte de escutar? A capacidade de estabelecer relações diferentes com a natureza que nos circunda que não sejam aquelas regidas por uma herança conceitual dicotômica, desequilibrada, apenas direcionada e governada pela lógica do lucro?

Quando crianças e famílias indígenas se deslocam por duas centenas de quilômetros em busca de novas terras porque assim foi “visto” pelo cacique/pajé, a centralidade do ser humano é superada não pelo impacto de novas tecnologias, como recita, em parte, a filosofia pós/transumana, mas porque é considerada parte integrante de um sistema mundo maior.

O animismo em seu sentido mais amplo nos solicita à “escuta” e certamente a repensar e reformular o modo de olharmos para o nosso mundo; e só Deus sabe o quanto precisamos disso e, por outro lado, nos faz refletir sobre o fato de que a maneira como interpretamos o nosso mundo muda a nossa experiência daquele mundo.

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