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As coisas como elas são…

O Estado democrático de direito e a ocupação da fazenda Aroeiras pelo MST

Por Alê Portela
Publicado em 10 de abril de 2024 | 07:00
 
 
 
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Perdura no debate público nacional, em toda sorte de editoriais, matérias, textões ou vídeos histéricos de redes sociais, a exortação do Estado democrático de direito. E eu concordo com isso. Profissionalmente, esse é o meu “lugar de fala”. Sou advogada e mestre em direito. Tenho a exata dimensão do Estado democrático de direito (que simplificaremos com a sigla EDC) como o arranjo que busca garantir a justiça, a igualdade e o desenvolvimento da nação. Ele é a base de direitos humanos fundamentais. É o que garante direitos individuais e coletivos, sociais e políticos, democraticamente desenhados pela Constituição. É também o que dá limites à atuação do próprio Estado. 

Ao não condenarem ou repudiarem os 13 dias de ocupação da fazenda Aroeiras, em Lagoa Santa, no último mês de março, essa mesma fração de articulistas, influenciadores, jornalistas e parlamentares expõe a falta de sinceridade com relação ao que manifestam “acreditar”, ou, na melhor das hipóteses, falta de conhecimento sobre algo tão fundamental à paz social. 

Alguém pode ter “estranhado” a forma como me referi à ação do Movimento dos Sem-Terra (MST), classificando-a como “ocupação”, e não “invasão”. É porque o EDC define o que é uma coisa e o que é a outra. Simples assim: ocupação é a tomada pacífica do imóvel, sem nenhuma resistência, pois não há ninguém na posse; invasão é quando essa tomada acontece de forma violenta, como quando mediante ameaça ou lesão corporal contra quem se encontra na posse do imóvel. Casa ou fazenda, tanto faz. Não é preciosismo argumentativo o emprego deste ou daquele adjetivo. É porque a sinceridade também se verifica no cuidado com os detalhes. 

Por isso causa a mesma estranheza de um bode velho, suado e parado no meio da nossa sala de estar, o repentino silêncio desses que até há bem pouco queriam denunciar em “Cortes interplanetárias” os “ataques” ao EDC. 

Esse tipo de ação do MST (sendo uma coisa ou outra, tanto faz) fere o direito de propriedade previsto na Constituição brasileira, que alicerça o nosso EDC. O que fundamenta esse tipo de ação do MST é o “não cumprimento da função social” das fazendas. É uma justificativa frágil, vaga.  

O direito de propriedade, artigo 170 da Constituição, sequer faz distinção entre uma coisa e outra. Ainda assim, não era o caso da fazenda Aroeiras. Propriedade deixada para oito irmãos, suas atividades são mantidas pelo esforço de alguns dos herdeiros. “Não somos latifundiários. A gente consegue manter a fazenda do jeito que dá. Não significa que ela está abandonada ou que não temos a posse dela”, disse uma das herdeiras, que completou: “Meu pai ficou lá até o dia em que ele morreu”.  

Ainda que fosse uma terra não cumprindo sua função social, existe um lugar certo para esse debate: os tribunais. Levado o caso a um juiz, ele é quem decidirá, com base na apresentação dos argumentos e das defesas de ambas as partes, se ele cumpre ou não sua função social. Caso se reconheça – e caso haja interesse do proprietário –, teria início a sua desapropriação, mediante justa indenização. 

A defesa do Estado democrático de direito deve acontecer em sua totalidade, a todo tempo. Não deve ser manipulada ao sabor do momento e do benefício de determinado grupo político. Todos os que participam do debate público precisam se responsabilizar por isso. Do contrário, revestem de cinismo algo que é fundamental à harmonia social. Nunca antes as contradições e seletividade da virtude foram tão fáceis de serem constatadas. E nenhum projeto político prosperará dessa forma. Pior ainda: nenhuma nação civilizada se desenvolverá escorada em práticas e artimanhas tão cínicas.  

Esse tal país de “todes” não vai nos levar a “nades”! 

(*) Alê Portela é deputada estadual e mestre em direito e MBA em governança, riscos e compliance 

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