Opinião

Fake news, calúnias e censura

Antes de Gutemberg, maledicências eram feitas boca a boca

Por Doorgal Borges de Andrada
Publicado em 23 de junho de 2020 | 03:00
 
 
 
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A expressão inglesa “fake news”, tão charmosa e atual, traduzida ao “pé da letra”, significa “notícia falsa”. Ou seja, mentira, fofoca, calúnia, boato, inverdades e outros. E desde que o mundo é mundo, e enquanto existir a espécie humana, essa prática vai se repetir em todos os continentes, entre cultos e/ou incultos. Infelizmente.

Antes de Gutemberg criar a imprensa no século XVI, as maledicências, que hoje são denominadas de “fake news”, eram feitas boca a boca, corpo a corpo. O surgimento da imprensa trouxe a possibilidade de distribuir livros e folhetos para o povo, e foi algo que apavorou príncipes, nobres e a igreja de cada reino. Ameaçados diante da divulgação de informações diferentes, os detentores do poder criaram os controles de Estado, e a censura foi estabelecida. Então, as verdades ou ofensas não puderam ser mais publicadas.

Com o passar do tempo, surgem os jornais e livros em série, às vezes, sob controle do Index (Índice dos Livros Proibidos – considerados heréticos, anticlericais e censurados pela Igreja). Essas desaprovações, ainda hoje, continuam em alguns locais do mundo, por meio de religiões falsas ou fanatismo.

Estado democrático de direito

Séculos depois, somando-se a nossa explosão demográfica e a chegada dos meios de comunicação de massa, ganhou força a liberdade de expressão. E, após a Segunda Guerra Mundial, consolidou-se o Estado democrático de direito ante a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que eliminou de vez a censura, garantindo a todos o direito de se manifestar amplamente, ainda que espalhando até calúnias (as velhas fake news).

Desde então, quem se sentir ofendido deve ir à Justiça após a publicação ou a verbalização da ofensa ou da mentira, a fim de buscar a condenação criminal, a reparação dos danos sofridos e o direito de resposta. Impossível qualquer censura. Poderemos ter, talvez, autocontrole ante o senso pessoal, da ética, da moral, da educação, da religião, dos valores familiares e profissionais.

Grandes grupos já detêm, mundo afora, a quase totalidade do monopólio da mídia para informar e noticiar há décadas. E com esse grande poder nas mãos, eventualmente, também inventam, mentem, distorcem e fofocam, tudo sob o título de “noticiário”. Contudo, mesmo perante a existência de eventuais leis de censura, um texto proibido ainda acaba sendo impresso e/ou divulgado por rádios clandestinas ou em outros veículos. Nenhum país, mesmo os que possuem regimes totalitários, como comunista, nazista, socialista, fascista, conseguiu calar o pensamento divergente.

Informação

O mundo está em mudança radical. Hoje ninguém mais impede a divulgação, seja de elogios ou críticas, nem mesmo o poderio do Estado, nem as igrejas, universidades ou as famílias. Nesta época pós-moderna, possuímos ferramentas de informação superavançadas e, ao mesmo tempo, voltamos a ver as práticas de disseminação da mentira – ou do elogio falso – por meio do boca a boca, como eram nas aldeias medievais pré-Gutemberg. São agora as velhas fake news que se modernizaram: “viralizaram”.

Ora, então como proibir tudo isso? Como calar? Jamais! Seria tecnicamente inviável; além disso, o ato de censurar é inconstitucional. Mas é bom lembrar que, naturalmente, as fake news perdem a força, esvaziando-se, como ocorre com tudo que um dia deixa de ser novidade, e nos cansa. Foi assim com a descoberta do telégrafo, do rádio, da TV em cores, que sacudiram o mundo da época e depois perderam a grandeza.

Precisamos nos (re)adaptar e fazer como quando comprávamos determinados jornais e revistas, ou seja, ao abrir o WhatsApp, por exemplo, devemos ler/ouvir somente o que acreditamos ser fonte de informação correta. Selecionar. Mas tentar impedir que as milenares fake news sobrevivam, a propagar lamentavelmente as mentiras, agressões político-partidárias de ambos os lados, violências verbais, falsas vitórias, boatos – seria uma luta inglória e antijurídica.

Transformações

Contam que, quando surgiram o primeiro carro e a máquina locomotiva, muitos cocheiros e carroceiros, que estavam prestes a perder seus status, diziam que aquelas “geringonças a vapor eram coisa do diabo”. Mas não eram. Se Gutenberg, há 500 anos, revolucionou e causou pânico nos poderosos da época, criando algo impensável naquele tempo, hoje, a internet, a robótica e os celulares estão a fazer o mesmo com os que se acham donos do mundo.

E o mundo segue em constante mudança, inclusive, com possível surgimento até de um contraponto eficaz e lícito contra as atuais fake news, via corpo a corpo, que “viralizam”, derrubando monopólios.

Enquanto isso, temos a lei a nos garantir o direito de resposta/retratação, a condenação por danos morais e a prisão por calúnia, injúria ou difamação.

Doorgal Borges de Andrada foi juiz de direito, promotor de justiça, delegado de polícia e professor universitário

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