Claudio Shikida - IbmecBH

Se o Leão morder, case-se

Causas e consequências do modelo de tributação

Por Claudio Shikida
Publicado em 09 de agosto de 2023 | 17:47
 
 
 
normal

A reforma tributária é um tema perene. Pode-se mudar todo o sistema tributário de um país que, na manhã seguinte à reforma, teremos queixas e sugestões. Não é difícil entender o motivo disso, já que tributos envolvem tirar da renda auferida com o trabalho um quinhão que será levado coercitivamente pela autoridade pública. É mais honesto chamar os pagadores de impostos por esse nome do que pelo de “contribuintes”. Caso o leitor não pense que minha sugestão traga mais honestidade, creio que concordará que ela diminui o cinismo que incomoda a nós, que pagamos impostos sem um sorriso no rosto, apenas conformados. 

Impostos e subsídios são desenhados pelos gestores públicos, idealmente, não apenas para maximizar a arrecadação (para alguns, “imposto é vida”), mas também para incentivar certos tipos de comportamentos. A nova reforma popularizou a tradução do famoso “sin tax” norte-americano, qual seja, o “imposto do pecado”. Anteriormente um jargão da seita dos especialistas em finanças públicas, agora é um termo que caiu na boca do povo. E o que é esse imposto? É um tributo sobre alguns “pecados” que cometemos, como ingerir álcool ou tragar um cigarro. O objetivo do imposto? Diminuir a ocorrência desses pecados. “Deus nos proteja desses moralistas”, dirá o leitor entre uma cerveja e um charuto. Quem poderia condená-lo? 

O fato é que a história dos tributos é cheia de curiosidades. Tome-se, por exemplo, o imposto dos solteiros, criado no Brasil pelo Decreto-Lei 3.200, de 19 de abril de 1941, dentro de uma visão governamental – bem moralista? – acerca da “organização e proteção da família”. Os artigos 32 a 36 do referido decreto, em resumo, aumentava a carga tributária sobre solteiros, viúvos e casados sem filhos. Era uma espécie de imposto do pecado? A Receita Federal, na época, justificou de forma distinta, afirmando que, por não terem filhos, essas pessoas teriam maior capacidade de “contribuir” (melhor dizendo: pagar mais impostos). 

Segundo a Receita, o imposto não foi aplicado, e a Lei de Proteção à Família foi revogada em julho de 1964, ironicamente, no início do regime militar. Tivesse sido implementado (e se tivéssemos bases de dados), poderíamos estudar o impacto dessa política. Além disso, sabemos que a expectativa das pessoas é importante, e é possível que alguns casamentos de fachada tenham ocorrido logo após o anúncio da lei, por alguns mais ansiosos (para a alegria dos tabeliães?). Quantos filhos podem ter nascido por receio da implementação desses quatro famigerados artigos do decreto? Provavelmente poucos. 

A despeito da explicação da Receita, a impressão que fica é que o governo tinha em sua motivação a concepção de que o crescimento econômico do país ganharia com o aumento da sua força de trabalho e, como os valores da época eram muito mais duros com filhos ilegítimos (sem falar que o investimento no aprendizado destes nem sempre era prioridade para os pais), valeria a pena sinalizar para os indivíduos que filhos seriam importantes. Claro, viúvos e pessoas com problemas relacionados à fertilidade certamente foram danos colaterais dessa política tributária. 

Esse curioso imposto não foi uma dessas jabuticabas brasileiras. Em 1920, o governo francês criou imposto similar que foi celebrado não por defensores da família tradicional, mas por feministas (o imposto era democrático: atingia solteiros e solteiras). Veja o leitor que é possível conceber uma realidade em que feministas e defensores da família tradicional se unam em torno de um imposto. A mordida do Leão pode ter consequências surpreendentes… 

Claudio Shikida é professor do Ibmec-BH

 

Notícias exclusivas e ilimitadas

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo profissional e de qualidade.

Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar. Fique bem informado!