Tal e qual em 1500, quando os portugueses invadiram o Brasil prometendo trocas comerciais e alianças aos povos originários que sempre habitaram este país, os Cabrais do século XXI votaram e aprovaram a Lei do Marco Temporal das Terras Indígenas, que não é nada mais do que a “Lei do Genocídio Indígena” (14.701/2023), prometendo-nos segurança jurídica. Desde então, o que vivenciamos é o aprofundamento da guerra contra os territórios indígenas, com lideranças, como Nega Pataxó, sendo mortas por aqueles que insistem em invadir e se apossar de nossa terra ancestral.
Nesta semana, em pleno Acampamento Terra Livre, o maior evento indígena do país, nossos direitos à demarcação foram novamente atacados. A recente decisão do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), que mais parece uma provocação aos milhares de indígenas presentes em Brasília, golpeia profundamente a justiça e os direitos fundamentais dos povos originários. Como representante do povo Xakriabá, sinto a obrigação de elevar minha voz contra esse ataque aos nossos direitos ancestrais.
Desde o início, a “Lei do Genocídio”, aprovada em regime de urgência um mês após a decisão do STF que considerou inconstitucional o marco temporal, revelou-se uma aberração jurídica. Essa lei limita os direitos dos povos indígenas às terras que ocupavam na data da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988, ignorando séculos de deslocamentos forçados e a dinâmica cultural de nossos povos.
O ministro Gilmar Mendes, ao reconhecer a inconstitucionalidade da lei, paradoxalmente decide mantê-la em vigor. Abre-se um prazo para debater a questão, procurando uma conciliação entre os Três Poderes e o Ministério Público, mas se exclui a participação direta dos povos indígenas, numa tentativa ilegítima de encontrar um acordo.
Alterar a Constituição por meio de uma lei ordinária é inaceitável. O STF, que havia se posicionado contra a tese do marco temporal, agora vê sua decisão ser ignorada por manobras legislativas apressadas, que comprometem não apenas a Justiça, mas a própria estrutura democrática de nosso país.
A nossa alternativa agora é, sobretudo, mobilizar o STF ainda mais, mas o Congresso Nacional também precisa responder. Não há justificativa para a não demarcação, porque a Lei 14.701/2023 não pode ser uma desculpa para não demarcar terras indígenas no Brasil. Se quem tem fome tem pressa, quem morre por conflitos territoriais tem ainda mais urgência.
Essa decisão é um ataque direto ao Poder Judiciário e aos direitos indígenas, e não podemos permanecer silenciosos diante de tal retrocesso. É um momento de mobilização, de unir forças para reverter essa injustiça.
A luta dos povos indígenas não é apenas uma questão dos poderes tradicionais do Estado; ela representa um quarto poder, o poder da terra que clama por justiça. Não estamos aqui apenas para falar; estamos aqui porque a luta nos escolheu para ser sua voz.
O ministro Gilmar Mendes e seus colegas precisam entender que a invasão para nós aconteceu em 1500. Nada depois disso é considerado invasão. O Brasil é terra indígena. Invasão é o que fazem aqueles que entram à força em nossos territórios para criar fatos políticos, que se organizam em frentes parlamentares e apoiam grupos de milícias ruralistas para expulsar à bala os povos que têm direito originário sobre suas terras.
Nós retomamos a terra roubada, ocupamo-la novamente porque sabemos que direito é aquilo que se arranca quando as escolhas se acabam. Somos aqueles que não podem mais esperar, porque a terra não apenas fala, ela grita.
CÉLIA XAKRIABÁ
Deputada federal (PSOL-MG)