FABRÍCIO CARPINEJAR

Afogado no caldo

'As mais tradicionais combinações têm o suco abundante em comum.'


Publicado em 14 de fevereiro de 2021 | 03:00
 
 
 
normal

Na infância, não escapava de levar “um caldo” dos meus irmãos em nossos banhos de mar, gíria para a malandragem de enfiar forçosamente a cabeça de alguém na água, até ele se desesperar com as pernas. 

Todos os “caldinhos” que sobrevivi quando menino não chegam aos pés do momento em que me afoguei nos costumes de Minas. 

Eu estava me deliciando com Vaca Atolada em almoço no apartamento do primo da esposa. A sala estava repleta de gente, de tal modo que comi com os cotovelos guardados, encaixotados no tampo de madeira. Lembrava um fantoche para quem me enxergava do outro lado da mesa. 

Quando fui repetir o prato, achando que agradaria a turma, Beatriz me repreendeu: 

- E o caldo? Você não comeu o caldo! Tem que limpar o caldo antes. 

Veio um silêncio geral. E todos foram conferir a veracidade da observação. 

Não sei o motivo, mas mineiro para de falar ao mesmo tempo diante de um constrangimento. É uma jogada ensaiada. Sai do completo e vivo alarido para a quietude fúnebre em segundos. É como Jô Soares apanhando o som da banda com a sua mão direita. 

Para mim, havia unicamente resto de molho. Eu acabei com o que importava. Não tinha mais mandioca e carne, o que me dava o direito da reprise. Era um prato molhado, não mais cheio, na minha condição gauchesca. 

Beatriz, então, em uma postura didática, ofereceu uma aula grátis de como transformar o garfo em colher e raspou a sua porcelana com requintes de crueldade. 

A parentada aplaudiu e daí interpretei que caldo é uma virtude local. Ter caldo é sinônimo de exuberância na iguaria. Você somente termina de comer quando ele desaparece. 

Largar a refeição com excedente do molho é uma desfeita. Significa que não gostou, que enrolou, que espalhou a comida. 

A atração dos principais menus da cozinha mineira vem a ser o sumo dos ingredientes mesclados no fogo lento. Existe um fetiche pela sopa, pela caldeirada, pela fumaça do fundo das panelas. 

É assim com o ensopado de frango caipira com o quiabo. É assim com bambá de couve (usando o segredo da couve rasgada, não picada). É assim com ora-pro-nobis. É assim com o frango ao molho pardo. 

As mais tradicionais combinações têm o suco abundante em comum. Quando não é o caldo, reina o aspecto de pasta, como no tropeiro e no tutu, servidos bem úmidos. 

Tanto que quem é daqui agradece quando surge um friozinho para abrir o apetite às gostosas fervuras. A chuva muda o menu das famílias. 

A culinária talvez seja um reflexo do temperamento. Mineiro gosta de estar acompanhado. Anda em bandos, grupos, numa cooperativa da troca de histórias e de opiniões. Dificilmente fica sozinho e de lado numa reunião ou numa festa. Pelo engajamento da conversa, dois mineiros juntos já formam um comício.

Convicto de que aprendi a lição, inventei de buscar um pão na cozinha para secar o caldo no prato. 

Beatriz balançou a cabeça, como se eu não tivesse conserto. 

- Isso não é molho de massa, Fabrício. É caldo! 

Continuo não entendendo nada. Mas que é bom é bão.

Notícias exclusivas e ilimitadas

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo profissional e de qualidade.

Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar. Fique bem informado!