Ando às voltas com a redação de um capítulo de livro sobre criminalidade e segurança pública. Sugeriram-me esclarecer como a sociologia pode ajudar a compreender esses fenômenos. Respondi que a sociologia primeiro deve ajudar a si própria. Supostamente, esta disciplina seria capaz de explicar por A mais B as causas da criminalidade e definir linhas de ação para as políticas de segurança pública. Mas a disciplina está em “crise” e um dos seus principais problemas teóricos é a perpetuação de dicotomias tais como “sociedade” e “indivíduo”, “estrutura” e “ação”, “macro” e “microconhecimentos”.
As tentativas de superar tais dicotomias apresentam uma lacuna que seus autores não lograram preencher: a imprecisão relacionada à noção de estrutura, ou melhor dizendo, aos elementos que antecedem e balizam as escolhas e ações dos atores sociais, inclusive as ações criminosas.
Longe de atribuir a criminalidade às desigualdades sociais ou à pobreza, sugiro que os níveis de criminalidade são determinados por outro tipo de estrutura: o da divisão social do trabalho que, em última instância, é responsável pela difusão do fenômeno da cidadania. Não há espaço aqui para maiores conjecturas teóricas, basta ao leitor assumir que os fenômenos da liberdade, da igualdade e da democracia social e política são pressupostos básicos da cidadania.
Há entre os autores clássicos um ponto comum essencial à análise sociológica: a vinculação da emergência da igualdade e da liberdade ao surgimento e consolidação do capitalismo, vale dizer, à difusão das relações de mercado, à intensificação do processo de divisão do trabalho e à crescente monetarização das relações de troca.
Durkheim é quem mais explicitamente demonstra o papel da divisão do trabalho na geração da coesão social ou da “solidariedade orgânica” nas sociedades modernas. Ora, o que é este tipo de solidariedade senão o da interdependência das distintas funções nas sociedades complexas? Países como o Brasil onde prevalecem as atividades informais e o desemprego estrutural não conhecem, senão de forma incipiente, este tipo de coesão social, vale dizer, a plena cidadania.
Com raras exceções, os homicídios são mais frequentes em “sociedades em desenvolvimento” e os suicídios em sociedades avançadas. Os dados são eloquentes: o Brasil, com 30,2 homicídios por 100 mil habitantes, só fica atrás dos países da América Central dominados pelo crime organizado e o tráfico de drogas. No entanto, o índice de homicídios no Brasil é cinco vezes maior que a média global e em números absolutos é imbatível: algo em torno de 50 mil por ano. Por outro lado, enquanto países mais avançados como Bélgica, Suécia, Finlândia e Estados Unidos, onde as taxas de homicídios são bem inferiores, as taxas de suicídio variam entre 15 e 21 por 100 mil habitantes. O Brasil, com uma taxa de 6,09 suicídios por 100 mil habitantes, ocupa a 152ª posição no ranking mundial.
Isso sugere que os países onde reinam a plena cidadania e maior coesão social os indivíduos preferem se matar a cometer homicídios, o oposto do que ocorre em sociedades onde as relações de mercado, o aprofundamento da divisão do trabalho e a civilidade ainda são incipientes. Voltarei a esse tema em outra oportunidade.