Apenas recentemente matei minha curiosidade sobre as teorias do italiano Cesare Lombroso. Muito por acaso, caiu em minhas mãos uma preciosidade: a segunda edição em francês de “L’Homme Criminel”, de 1887, cujo subtítulo indica tratar-se um estudo antropológico e médico-legal. Banido dos meios acadêmicos por sua controversa tentativa de associar traços físicos, notadamente o formato do crânio, às tendências criminosas do indivíduo, o livro aborda em seus capítulos iniciais questões relevantes para as ciências humanas.
Trata-se de obra complementar, embora antecipada no tempo, ao pensamento de Norbert Elias sobre o processo civilizador. Grosso modo, Elias trata da transição da Idade Média à Modernidade, enquanto Lombroso procura identificar na sociedade de sua época vestígios culturais das sociedades primitivas.
Andei comentando aqui que a interdição do incesto foi o primeiro ato civilizador, mas é claro que o gradativo desaparecimento do canibalismo, onipresente entre povos primitivos de todo o mundo, tenha igualmente desempenhado esse papel. Segundo Lombroso, “o instinto de vingança, que presidiu a uma grande parte dos delitos e das penas encontra-se ainda hoje muito presente entre as classes inferiores”.
Qualquer semelhança entre algumas das práticas judiciais contemporâneas e as formas primitivas de justiça não é mera coincidência, e sim manifestação de atavismo cultural, como sugere o autor. “O bem sagrado que antigamente servia para reparar os crimes permaneceu em vigor no mundo durante muitos séculos, e o abuso que dele se fazia foi uma das principais causas da reforma de Lutero.” Trata-se da punição do infrator por meio da imposição de uma “tarifa”, semelhante à instituição da fiança, que, há mais de um século, Lombroso dizia em nada se diferenciar, do ponto de vista moral, da tarifa em uso entre os povos mais selvagens.
Surpreendentemente, a Justiça brasileira parece haver dado, nesta semana, um passo civilizador ao propor a soltura de centenas de milhares de presos que, tendo o direito à fiança, mas não tendo como pagá-la, permanecem encarcerados por tempo indeterminado.
Concluo com algumas citações dessa obra controversa: “Um resto desta justiça primitiva que o povo exercia num momento de fúria (...) é reencontrada no júri. Ainda hoje, sobretudo nos países quentes, o mesmo júri que condena um ladrão absolverá um homicida”. Para Lombroso uma forma criminosa de justiça se reproduziu plenamente na América com a prática do linchamento, esta explosão de cólera popular, que perdurou até os anos 50 e que, ao influenciar a justiça, se aplicou de maneira muito diferente entre os brancos e as pessoas de cor.