Gaudêncio Torquato

A seca na seara dos valores

Humanidade, dignidade e a vontade de poder


Publicado em 27 de setembro de 2020 | 03:00
 
 
 
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O processo civilizatório se assemelha a uma régua de evolução de costumes, princípios e valores, avanços e retrocessos. Nem sempre ocorrem mudanças na história do homem, principalmente na litigiosidade entre seres e nações, desvairada competividade nos negócios e empreendimentos, luta acirrada entre grupos e até credos religiosos na ambição de brilhar na galeria dos maiores e melhores. Em alguns nichos, há avanços sob a teia de pesquisas científicas em áreas como ciências biomédicas, inteligência artificial, agricultura, engenharia de produção.

Mas é inegável que, no altar dos valores, a humanidade se vê esmaecida, particularmente na sua dignidade. A ambição, a luta pelo poder, a inveja, a mentira, enfim, a ideia de tirar proveito de tudo constituem braços que puxam o planeta para nossa ancestralidade. Esse mundo pandêmico é exemplo de interesses políticos, econômicos, geográficos. Nem a ciência pura está livre de injunções oportunistas, até eleitorais, como se constata hoje, por exemplo, nos Estados Unidos.

O valor do compromisso está se perdendo. Nossos pais e avós garantiam pela palavra dada o fechamento de um acordo. Papéis em cartório só formalizavam. Claro, havia desavenças e até mortes na luta pelo poder. Mas guardava-se certo respeito.

A educação era momento de grandeza. Os pais lutavam com seus recursos para formar os filhos. O ideal era bancar a educação. Muitos morriam pobres, mas felizes.

O educador era uma referência de saber, grandeza, boa orientação, bons propósitos. Pinço a história contada por um rabino durante um casamento, que se pode ouvir num vídeo nas redes. Um ex-aluno encontra seu velho professor e pergunta: “Lembra-se de mim”? Responde o mestre: “Não, quem é você? Ah, deve ter sido meu aluno”. O rapaz relembra um caso ocorrido na escola, quando viu um colega com lindo e caro relógio e o surripiou. Ao constatar o roubo, o roubado reclamou: “Quem foi?”. O professor fechou a porta e pediu que todos formassem uma fila. O raptor ficou desesperado, seria flagrado. Surpresa: o professor mandou fecharem os olhos. E assim conseguiu recuperar o roubo. O ex-aluno: “Professor, o senhor salvou minha alma, minha dignidade. O senhor sabe que fui eu”. O mestre: “Não, eu nunca soube que foi você. Eu também estava de olhos fechados”.

Belo exemplo de educador. Não queria punir, mas transmitir o legado da consideração. Aula de dignidade. Que cai bem nesses tempos de guerras fratricidas. Nesse mundo cheio de carências materiais, a fome ataca e mata milhões. Mas a fome espiritual esvazia nossos sentimentos e destrói valores entre grupos e classes, com foco na parte de cima da pirâmide social, movida pela ambição.

A razão é a vontade de poder. Nietzsche escreveu sobre isso, em texto publicado depois de sua morte em coletânea editada por sua irmã Elizabeth: “Você quer um nome para este mundo? Uma solução para todos os seus enigmas? Este mundo é a vontade de poder – e nada além disso! E vocês também são essa vontade de poder – e nada além disso”.

Essa maldita vontade, no meio da maior crise que o mundo atravessa, ameaça expandir a Era do Mal.

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