Laura Medioli

Laura Medioli

Laura Medioli é escritora e presidente da Sempre Editora, responsável pela publicação dos jornais Super, O TEMPO e O Tempo Betim, além da rádio FM O TEMPO e do portal O TEMPO. Formada em estudos sociais, Laura já atuou como professora e se dedica de forma intensa hoje à causa da proteção animal.

LAURA MEDIOLI

As diferenças do mundo

Loirinho dos olhos azuis, Lino era meio que um 'Etzinho', carinhosamente levado de colo em colo pelas mulheres ianomâmis, que o adoravam

Por Laura Medioli
Publicado em 23 de junho de 2019 | 04:00
 
 
 
normal

Almoço de domingo na casa da mãe é tudo de bom, principalmente quando se reúnem irmãos, sobrinhos, filhos dos sobrinhos, cachorros, com direito a comilanças e a vários assuntos atrasados... Falar das últimas da nossa política, dos seriados da Netflix, das escolas dos filhos, das planejadas viagens... Ouvir sobre a nova pediatra zen, que quase se alimenta de prana e envia energias do astral e do além.

Todos querendo se entreter com a caçulinha da família, Aurora, que, com 1 aninho, começou a andar e a nos deixar malucos correndo atrás dela, no enorme jardim da bisa, com chafariz, plantas, pés de jabuticaba, musgos, acerolas caídas e apodrecidas no gramado, banquinho de cimento, canjiquinha no chão pros passarinhos e um bem-te-vi arredio que pousou por ali. Enfim, um paraíso para seu pequeno mundo!

Enquanto seguro as mãozinhas dela, o irmão, Lino, de 3 anos, resolve, sozinho, redescobrir o lugar. Nascido na Holanda, morou um tempo em Roraima, onde conviveu com ianomâmis, nadando em rios, brincando descalço com as crianças, aprendendo a respeitar as plantas e os animais. Depois de vê-lo usufruir de momentos memoráveis em meio à exuberância da Amazônia, me pergunto: O que é para ele um jardim?

Talvez uma versão diminuta da floresta, sem tantas árvores, sem muitos bichos, com apenas alguns poucos insetos. Irrequieto, Lino procurava formigas, lagartas, cupins e se embrenhava em meio às plantas, curioso, até voltar desanimado... Não encontrara sequer uma lagartixa para observar.

Com um pedaço de pau, saí cavando a terra úmida em busca de tatus-bolinhas. E nada! Descobri que eles não mais existem na infância dos meus sobrinhos netos. Foram poucos na infância das minhas filhas, mas estiveram muito presentes na minha meninice.

Conversando com meus irmãos, nos lembramos de como era antes, quando em nossa casa existiam mais bichos, mais aleluias, cigarras, vagalumes e louva-a-deus, quando era comum encontrarmos na sala besouros pretos e enormes, chamados escaravelhos, assim como as borboletas azuis. E, nas árvores, micos abusados invadiam a cozinha em busca de frutas. Abelhas eram presenças rotineiras e também as caixas de marimbondos, aonde a meninada adorava jogar pedra e, depois, sair correndo.

A tarde chega, com aquele friozinho junino. Meus irmãos retornam às suas casas, enquanto permaneço com minha sobrinha Ana e seus pequenos.

Há quase dois anos, Ana e a família (o marido também indigenista) voltaram a Belo Horizonte, sua cidade natal, morando no sexto andar de um edifício de 24. Por mais de dez anos, ela alternou sua estadia entre Boa Vista, em Roraima, e as aldeias.

Loirinho dos olhos azuis, Lino era meio que um “Etzinho”, carinhosamente levado de colo em colo pelas mulheres ianomâmis, que o adoravam.

Acostumado à natureza, ele gosta de ir ao sítio da avó ou passear no jardim da bisa. Imagino que, com sua cabeça pequena, ainda em formação, não compreenda bem o sumiço da floresta, das maritacas, do calor escaldante e úmido da região Amazônica, dos rios que viraram piscinas, das árvores gigantes e centenárias que se transformaram em jabuticabeiras e em pés de acerola. A entrada na escola, a convivência com crianças como ele, meninos crescidos no prédio, que logo, logo aprendem a jogar bola. E, apesar da proibição da sua mãe, provavelmente, ele também comerá McDonald’s, acompanhado de batatas fritas e Coca-Cola.

Assim, com sua cabeça pequena, Lino começa a entender as diferenças do mundo.

Notícias exclusivas e ilimitadas

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo profissional e de qualidade.

Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar. Fique bem informado!