LEONARDO BOFF

Um desafio para o papa Francisco: assumir plenamente a humanidade

Em primeiro lugar vêm a fé, o amor; depois, as doutrinas


Publicado em 27 de setembro de 2013 | 03:00
 
 
 
normal

Como comentário a uma entrevista que dei ao jornal “La Libre Belgique” de 9 de agosto de 2013, um leitor, Marc Den Doncker, escreveu estas palavras, que considero dignas de ser refletidas.

“O bom papa Francisco anuncia francamente uma revolução na linha de uma humanidade mais plenamente humana. Ele diz: ‘Se alguém é um homossexual que procura a Deus e é de boa vontade, quem sou eu para julgá-lo?’. Pode bem ser que em algum tempo o papa expressará amor por uma pessoa homossexual que não procura necessariamente a Deus, mas que é, malgrado tudo, alguém de boa vontade. Aí estaria a influência do Espírito Santo.

Pode bem ser que, em algum tempo, o bom papa Francisco refletirá sobre uma pobre mulher que se perfura com uma agulha de tricô para se livrar de um feto, fruto de um estupro, porque se encontra desesperada. Pode bem ser que Deus fará o bom papa entender a situação dessa mulher. Pode ser que compreenderá que um casal que decidiu não ter mais filhos utilize tranquilamente a pílula.

A vida nos dá uma abundância espantosa de fatos trágicos. Face a essa situação real, estaria a Igreja pronta para deslizar por um caminho escorregadio, mas na direção de uma humanidade plenamente assumida, animada pelo Espírito Santo, que não tem nada a ver com princípios e casuísmos que acabam matando o amor ao próximo? É preciso esperar. Sim, confiantes, esperaremos”.

De fato, não poucas autoridades eclesiásticas, com dignas exceções, perderam, em grande parte, o bom senso, esqueceram-se da imagem do Deus, de Jesus Cristo. A característica principal desse seu Deus é o amor incondicional e a misericórdia sem limites, pois Ele ama os ingratos e maus e dá o sol e a chuva aos bons e aos maus, como nos dizem os Evangelhos.


Para Jesus, não basta ser bom como o filho fiel que ficou na casa do Pai e seguia todas as suas ordens. Precisamos ser compassivos e misericordiosos com os que caem e ficam perdidos nas estradas. O único que Jesus criticou foi esse filho bom, mas que não teve compaixão e não soube acolher o irmão que estava perdido e que voltou para casa.

O papa Francisco, em sua fala aos bispos no Rio, cobrou-lhes uma “revolução da ternura” e a capacidade ilimitada de compreensão e de misericórdia. Bispos e padres devem mudar radicalmente a relação com o povo: nada burocrática e fria, mas calorosa, simples e carregada de enternecimento. Esse era o estilo do bom papa João XXIII. Há um fato curioso que revela como entendia as doutrinas e a importância do encontro com as pessoas. O que conta mais: o amor ou a lei? Os dogmas ou o encontro?

Giuseppe Alberigo, leigo de Bologna, comprometido com a renovação da Igreja, foi um dos maiores historiadores do Concílio Vaticano II (1962-1965). Seu grande mérito foi ter publicado uma edição crítica de todos os textos doutrinários oficiais dos papas e dos concílios, desde os primórdios do cristianismo: o “Conciliorum Oecumenicorum Decreta”. Ele mesmo conta no “II Corriere di Bologna” que, em 16 de junho de 1967, viajou, orgulhoso, a Roma para fazer a entrega solene ao papa João XXIII do volumoso livro. João XXIII tomou-o em suas mãos, sentou-se em sua cadeira pontifícia e colocou o livro no chão. E pôs ambos os pés em cima.

Foi um ato simbólico. Tudo bem que haja doutrinas e dogmas. Existem para sustentar a fé, não para servir de instrumento de enquadramento e de condenação. Pode bem ser que o bom papa Francisco se anime a fazer algo parecido, especialmente com referência ao direito canônico e a outros textos oficiais do magistério que pouco ajudam os fiéis. Em primeiro lugar vêm a fé, o amor e a esperança para uma humanidade atordoada. Depois, as doutrinas. Oxalá o bom Deus conduza o papa Francisco nessa direção corajosa e simples.

Notícias exclusivas e ilimitadas

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo profissional e de qualidade.

Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar. Fique bem informado!