MÁRCIO COIMBRA

Vacina russa

A busca por imunizantes está ultrapassando o terreno do razoável e aterrissando no impensável


Publicado em 05 de maio de 2021 | 06:00
 
 
 
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A falta de vacinas no Brasil acendeu um alerta importante. A busca por imunizantes está ultrapassando o terreno do razoável e aterrissando no impensável. A opção realizada por alguns governadores em comprar a Sputnik V mostra o grau de desalento pelo qual passa o país. A aposta na vacina russa é arriscada, para não dizer irresponsável, mas encontra eco diante de uma população que morre aos milhares e clama pela chegada de medicamentos que possam debelar o vírus.

Ao contrário de imunizantes desenvolvidos por renomados laboratórios, como Pfizer, Moderna, Janssen e AstraZeneca, a vacina russa ainda é recoberta de desconfiança e mistério. Sem publicação de resultados consistentes de todas as fases de testes em revistas científicas respeitadas, o imunizante produzido pelo Instituto Gamaleya usa mais o poder de dissuasão do Kremlin do que a ciência propriamente dita como garantidor de sua eficácia.

Neste ponto entra o jogo político internacional e a pressão dos russos. O Brasil entrou nesta rota desde que governadores se mobilizaram para comprar o imunizante. Pouco antes da rejeição pela Anvisa para importação da Sputnik V, iniciou-se uma campanha alicerçada em uma narrativa distorcida com o objetivo de pressionar a agência a liberar, ao arrepio das normas sanitárias, a importação do imunizante. OMS e EMA (contraparte europeia da Anvisa) sofrem com o mesmo problema há meses.

Transparência certamente não é uma qualidade dos russos, que desde os tempos da União Soviética têm o hábito de mascarar a verdade em troca de ganhos políticos. Faltaram dados brutos sobre os estudos da vacina. Além disso, não foi permitido acesso à fábrica do imunizante em Moscou, e foram demonstradas sérias dificuldades para assegurar padrões basilares de controle de qualidade do fármaco. Isso, somado ao adenovírus replicante, encontrado no imunizante, fez com que a Anvisa decidisse declinar a importação da vacina.

Se os russos trabalhassem com a mesma eficácia, usada no contra-ataque político e midiático, para fornecer dados transparentes e científicos, certamente tudo seria mais fácil. Mas, ao optar pelo caminho mais difícil, o Fundo Russo de Investimento Direto (RDIF) e o Instituto Gamaleya anunciaram que processariam a Anvisa por difamação, pelo simples fato de a agência ter realizado de forma diligente o seu trabalho de avaliação.

Fato é que a Rússia tem utilizado seu imunizante como instrumento de soft power, deixando claro que seus objetivos estão muito além do cuidado sanitário e evidências científicas. Diante disso, o Brasil precisa se perguntar se o parceiro de Brics atua somente para proteger os seus próprios interesses e se está usando um dos seus principais sócios no bloco como país teste de uma vacina sem eficácia comprovada.

A geopolítica das vacinas se tornou um ponto importante de debate, e a falta de imunizantes no Brasil tem acelerado tratativas políticas emergenciais que podem trazer para nosso país vacinas ineficazes e até perigosas. O exemplo da Sputnik V é sintomático. Por certo precisamos debelar o vírus, mas de forma correta, com prudência, baseado em evidências científicas que protejam a população e estejam muito além de simples ganhos políticos. Não precisa nem combinar com os russos.

 

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