Chega, caros leitores, de falar sobre as estripulias de Donald Trump ou sobre a instabilidade política e institucional que ameaça a democracia brasileira. As crises conjunturais têm o condão de nos tirar a atenção daquilo que realmente importa.
Chamo este artigo de “palpites” porque estou destreinado, enferrujado. Afinal, faz mais de 15 anos que deixei a Secretaria de Estado de Saúde de Minas.
O SUS é uma ousada e vitoriosa aposta. Cheio de gargalos e imperfeições, garante acesso de todos os brasileiros ao conjunto de cuidados necessários para promover, restaurar e manter a saúde da população. Às vezes, falha, mas o direito de cidadania está previsto, e a tentativa de cumprir o mandamento constitucional é uma busca permanente. As demandas são infinitas, e o dinheiro é curto.
O que me chamou atenção e motivou este artigo foi o lançamento do programa Agora Tem Especialistas, pelo governo federal, como o mais importante programa de saúde do ciclo 2023/2026.
Aprendi com o meu guru sanitarista, Eugênio Villaça, que o objetivo central de gestores e profissionais de saúde é a construção de redes integradas de atenção. Traduzindo para os não especialistas: um bom sistema de saúde deve ter fluidez, efetividade e conexão entre a atenção primária de qualidade, a atenção secundária e a atenção terciária. Esse tripé deve ser escoltado por uma boa política de assistência farmacêutica e pelas ações de vigilância em saúde.
Quando o Ministério da Saúde confere protagonismo ao Agora Tem Especialistas, alguma coisa está errada. Primeiro, porque os especialistas nunca estiveram ausentes. Segundo, porque joga o foco em soluções temporárias para um elo intermediário da cadeia assistencial, abrindo mão de enfrentar o desafio de construção de uma rede integrada.
O protagonismo deve ser sempre e inequivocamente da qualificação da atenção primária – centro de gravidade coordenador da rede integrada. A literatura diz que 80% das demandas da população deveriam ser resolvidas nesse nível de atenção à saúde. Temos hoje 53.795 equipes de saúde da família espalhadas por todo o Brasil. Mas estamos longe de cumprir a meta que a literatura prescreve. Problemas graves de qualidade e organização impedem que a atenção primária cumpra plenamente seu papel. A ênfase da política pública e o foco dos gestores deveriam estar aqui.
Além disso, nossa experiência em Minas indicou que é preciso um modelo correto de organização da rede de especialistas e do sistema hospitalar, diante de uma teia de 5.569 municípios brasileiros, heterogêneos e desiguais. Chegamos à conclusão de que a melhor resposta para o SUS na atenção secundária, num sistema municipalizado, são os consórcios intermunicipais de saúde, localizados nos polos regionais de saúde.
O programa Agora Tem Especialistas resgata uma velha ideia com roupagem nova, visando atacar topicamente o gargalo na oferta de consultas especializadas e exames, comprando serviços na rede privada, que tenha capacidade ociosa, mediante renúncia fiscal. É bom, mas não é estruturante.
Não há saídas simples para problemas complexos. Só as redes integradas, ancoradas numa qualificada atenção primária, podem assegurar os avanços necessários, mesmo em ambiente de escassez orçamentária, para cumprirmos a tarefa inscrita na Constituição brasileira de 1988.