Continuam o sol nascendo a leste e se pondo a oeste, os ventos balançando as árvores e os rios fluindo para o mar; continuam os trens urbanos, os metrôs e os ônibus no horário, as pessoas caminhando para suas atividades, os supermercados, os hospitais e as igrejas todos abertos atendendo seus fregueses, pacientes e fiéis; continuam os jornais circulando diariamente e as emissoras de rádio e televisão mantendo suas programações diárias; continuam o Congresso Nacional e as Assembleias Legislativas estaduais, os tribunais de Justiça e as instâncias inferiores do Judiciário com suas rotinas sem interrupção; e os soldados continuam nos quartéis.
Se as instituições estão sólidas e operando normalmente e se, apesar da pandemia, mesmo chorando seus mortos, mesmo buscando reconstruir suas vidas, mesmo tentando reaver seus sonhos, os sobreviventes labutam para manter suas rotinas, por que se preocupar? Cá pra nós, está tudo certo?
Por que, então, aconteceram dois eventos inusitados na vida nacional? Governadores se reuniram para discutir os rumos do país e estão tentando em vão conversar com o presidente Bolsonaro, e cinco ex-presidentes da República – José Sarney, Fernando Collor, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Michel Temer –, por intermédio de interlocutores, tentaram consultar lideranças relevantes, da ativa e da reserva, das Forças Armadas sobre riscos de ruptura institucional. Cá pra nós, não está tudo certo.
Bolsonaro está em permanente campanha, estimula os radicais e ataca adversários, reais e imaginários, e as instituições. Não exerce a liderança que lhe foi outorgada pelo voto popular, pois não governa; e, mantendo-se alheio aos problemas nacionais, aliado ao seu clã familiar e algumas poucas pessoas de seu ciclo pessoal, não administra com sua equipe ministerial.
Não faz do exercício da política a elevada prática da promoção do bem-estar da população. Ao contrário, egoísta e autoritário, só atua em proveito pessoal. Faz da mentira e do ódio suas armas mais poderosas. Faz uso das redes sociais e do cercadinho na entrada do Palácio da Alvorada para lançar seus petardos sobre todos e ameaçar as instituições. Não pode passar despercebida a maneira como trata o conjunto da população, usando a expressão povo, no singular, como se fosse simples objeto. “Meu povo”, “meu Exército” são expressões suas.
Exemplos recentes de sua insubmissão aos Poderes da República são sua recusa em acatar a negação da Câmara ao seu devaneio de mudar o sistema de apuração das eleições e sua inédita petição requerendo impeachment de um ministro do Supremo Tribunal Federal, rejeitada de pleno pelo presidente do Senado. Estimula seus seguidores a demonstrarem força e intimidarem as instituições no dia de celebração da Independência do Brasil.
Cá pra nós, não está tudo certo. Que os soldados continuem nos quartéis.