Cotidiano. A cena é simples. Avenida Silviano Brandão. A mulher para em fila dupla após sinalizar adequadamente. O objetivo é estacionar o carro, já que ali, bem na porta do restaurante, há vaga disponível. Um ônibus vem metros atrás. O motorista simplesmente ignora a seta e o braço para fora. Cola no veículo, impedindo a manobra. Mas ainda é pouco. É preciso despertar a ira. Buzina e acelera no intuito de intimidá-la. Ela olha para trás e avisa que vai entrar na vaga. Ele ignora. Cola ainda mais em sua traseira. Sacode os ombros e desliga o coletivo lotado de passageiros.

A mulher se transforma. Sobe pelo corpo uma raiva incontrolável. Ela grita: “Acha que pode mais por ser homem ou por estar em um ônibus?”. Completamente tomada pelo ódio, também desliga o carro. Pirraça. Ela diz ao homem, colocando o rosto pra fora do veículo, que vai chamar a polícia. Ele ri, faz gestos. Os minutos vão passando. Ele grita e a ameaça. Ela pega o telefone e, só então, o homem liga novamente o coletivo e parte pela outra pista.

Os passageiros – todos amontoados na janela – olham para dentro do carro como se a mulher fosse maluca. Ela não é. Trabalha, cuida da casa, do filho, do marido, tem amigos queridos e uma vida normal. Mas ali, naquele momento, estava tremendo, abalada pela discussão no trânsito. Se tivesse uma arma, sinceramente, não sei do que seria capaz. No mínimo, desceria e dispararia contra os quatro grandes pneus.

Foram só cinco ou seis minutos, mas parecia uma eternidade. Passado o susto, veio a ânsia por vingança. Ela tinha, nas mãos, o número da placa. E conhecimento. Acesso fácil aos responsáveis da empresa capaz de identificar e punir o motorista. Queria justiça. Desejava que ele fosse penalizado pela maneira que age no trânsito. Estava disposta a não deixar barato. Mas o amigo do trabalho advertiu que poderia ser perigoso. “Não vale a pena levar essa situação adiante”, recomendou. Ela, que viaja em histórias, começou a fazer conjecturas. Quem era aquele homem? O que o levou a uma atitude tão descabida? Ele estava em um dia ruim ou de fato era aquele monstro no trânsito? E se a denúncia fizesse com que ele perdesse o emprego? Será que tinha filhos para sustentar?

Então, resolveu deixar pra lá. Engolir aquele que era apenas um sapinho perto das graves brigas de trânsito das quais tem notícia. Um amigo perdeu o pai. Baleado pelas costas em discussão banal em Contagem. Outra amiga desceu, no Anel Rodoviário, para tirar satisfação com o motorista que a fechou. O homem jogou o carro contra a moça, que caiu no chão. Não satisfeito, passou por cima do pé dela. A amiga hoje está bem, mas com dois parafusos no corpo.

Hoje em dia, ficar só no bate-boca é sorte. Há casos de agressões físicas, facadas, tiros e mortes em todo canto do país. Sempre existiram, mas são mais vistos nos últimos tempos. Certo é que a gente não conhece as pessoas quando são tomadas pela fúria do trânsito. Na verdade, a gente nem ao menos se conhece. Sabemos o que é certo e o que é errado, mas quando estamos lá, atrás do volante, parece que nada funciona. Triste e infeliz é a ira.

Ironia do destino. O amigo do trabalho (aquele mesmo que a aconselhou a não “entregar” o motorista) foi, dia desses, almoçar no mesmo restaurante. E adivinhem? Viu a cena se repetir. O condutor de um ônibus impediu outro motorista de estacionar na vaga em frente. O encrenqueiro parece ser reincidente. Ainda assim, ela não se arrepende de não ter feito a denúncia. Está em paz.

A mulher só queria estacionar. A propósito, ela sou eu. Motorista cansada da fúria e do trânsito maluco da nossa capital... Mas isso é outra história.

A jornalista Renata Nunes está de férias, e este texto foi originalmente publicado no dia 28.2.2014.