Tatiana Lagôa

Tatiana Lagôa

Tatiana Lagôa é jornalista e integra a lista dos 550 jornalistas mais premiados do Brasil. Atualmente, é editora de Cidades, colunista responsável pela Coluna RepresentAtividade e integrante do Programa Interessa, da FM O TEMPO.

REPRESENTATIVIDADE

Somos responsáveis pelo nosso sucesso?

Afinal, somos responsáveis pelo nosso sucesso. Certo? Desculpe, mas não é tão simples assim essa história.  

Por Tatiana Lagôa
Publicado em 24 de maio de 2024 | 09:28 - Atualizado em 24 de maio de 2024 | 09:30
 
 
 

Maria é uma mulher que, ao longo da vida, estudou nos colégios mais caros da cidade onde vivia. Teve acesso a cursos de idiomas, aulas de dança, viagens, espetáculos e equipamentos culturais. Joana conciliava os estudos com os cuidados dos irmãos e da casa enquanto a mãe dela se desdobrava em vários empregos para garantir o básico. As duas cresceram fortes e saudáveis e, na vida adulta, por coincidência do destino, se encontraram na sala da universidade. Pronto, agora, sim, elas estão em pé de igualdade, e, após a formatura, vai ter o melhor salário aquela que buscar mais oportunidades. Afinal, somos responsáveis pelo nosso sucesso. Certo? Desculpe, mas não é tão simples assim essa história.  

As duas personagens são fictícias e estão aqui neste texto só para tentar ilustrar uma realidade que mostra camadas muito superiores à simples boa vontade. Joana poderia ser infinitamente mais inteligente que Maria. Porém, sem oportunidades de desenvolver plenamente seu potencial, ela fica impossibilitada de alcançar as exigências do mercado. “Como assim?”, você deve estar pensando. Simples: quando elas se formarem, o currículo da Maria vai ter três idiomas, experiência internacional e estágio em grandes empresas (de amigos da família dela, mas quem se importa?). Já Joana vai chegar com o diploma e uma vontade imensa de crescer, com sabedoria vinda da vida e uma capacidade de apresentar soluções típicas de sobreviventes brasileiros. Estágio? Não, ela tinha que trabalhar para pagar passagem de ônibus e os xerox da faculdade.   

As duas têm sonhos legítimos: atuar na área de estudo e alcançar o sucesso profissional merecido pelo esforço. Mas quem vai precisar se esforçar mais? Quem tem maiores chances de alcançar cargos de liderança? Aí vem algum meritocrata que vai dizer: “Ah, Tati! Vai ser chefe quem trabalhar melhor. Eu tenho um primo que conseguiu!”. Eu não duvido que seu primo ou conhecido tenha um histórico de vida parecido com o da nossa Joana e tenha vencido na vida. Aliás, eu sequer disse que a Joana não vai ser vencedora na vida profissional dela. Mas o esforço será o mesmo? As entregas cobradas serão de fato idênticas? Os salários serão iguais?

Reparem que, apesar de negritude ser o foco desta coluna, até aqui eu não coloquei absolutamente nada sobre racismo. Eu estava só na camada econômica, que, automaticamente, já tira algumas possibilidades. Para não ser muito pessimista, eu nem citei que várias Joanas nem conseguem finalizar os estudos por falta de recurso. Também não quis pesar ao ponto de dizer que muitas delas se formam e sequer conseguem atuar nas áreas de origem por serem eliminadas na barreira das qualificações exigidas pelas empresas na seleção. Eu fui bem otimista e garanti que a nossa Joana chegasse até o mercado de trabalho.   

Agora, e se colocarmos mais camadas no nosso debate? Se a Joana fosse negra, e a Maria, branca. Ambas seriam vistas como opções de liderar as equipes de todas as empresas por que passarem? Então, por qual motivo só 3% das mulheres negras no Brasil ocupam cargos de liderança, conforme dados da consultoria Gestão Kairós? Seriam 97% das pardas e pretas do país sem perfil para assumir cargos de destaque? Isso estaria no DNA ou na melanina? Óbvio que não. Isso é social e se chama “racismo”. O mesmo racismo que nega oportunidades para gerações de pessoas negras e faz com que o acesso das Joanas ao sonho seja mais difícil do que para as Marias. Talvez até impossível, eu diria.

É que algumas barreiras são escaláveis, outras, não. Algumas Joanas encontram no caminho apoios, pessoas que emprestam “escadas” para a escalada se tornar possível. Mas tem as Joanas que estão lá na base desse muro tentando subir com uma corda na mão e um sonho. Dá para chegar? Talvez. Mas o que não dá é para criarmos uma visão coletiva completamente equivocada de que Joana pode subir nem que seja segurando a corda nos dentes sem nem apurarmos se ela usa dentadura, por exemplo. Deu para entender a analogia?   

Eu sei que é mais fácil continuarmos dando esperança para que algumas Joanas virem exemplo de sucesso, sem levar em conta o percurso atravessado, e ignorar, por exemplo, que a taxa de analfabetismo de pessoas negras é mais do que o dobro da encontrada em pessoas brancas. Esse dado, recém-divulgado pelo IBGE, sozinho já nos mostra uma desigualdade na base. Eu poderia citar muitos outros, mas não vou fazer isso porque vai ficar cansativo e não vou abusar da sua boa vontade que já chegou até aqui.  

Meu objetivo é só plantar essa semente de dúvida sobre a origem do sucesso para que mais pessoas reflitam sobre soluções. Nas empresas, por exemplo, podemos avaliar mais os potenciais do que as qualificações porque diploma se conquista estudando, mas experiência de vida, não. As Marias não precisam deixar de ser contratadas, pelo contrário, elas precisam estar nas empresas. Mas e se dermos as mesmas oportunidades para as Joanas? Juntas, elas vão conseguir se igualar ao José. Quem é José? Você sabe, caro leitor. Você sabe!

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