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Não vão nos aprisionar pelos fios

Da época da escravidão aos dias atuais, arrebentamos as correntes que prendiam nossos antepassados escravizados. Mas ainda falhamos na tentativa de soltar nossos cabelos e mantê-los naturais sem ouvir críticas

Por Tatiana Lagôa
Publicado em 13 de novembro de 2020 | 02:00
 
 
 
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“Qual é o pente que te penteia?” A pergunta, eternizada pela música “Nega do Cabelo Duro”, de David Nasser, é feita repetidas vezes para cacheados e crespos no Brasil. Apesar de ser relativamente fácil de responder, até porque boa parte de nós realmente não pentea os fios, esta não é uma questão que valha a perda de tempo. O que valeria a pena debater seria: qual a história que nossa cabeleira carrega?

Da época da escravidão aos dias atuais, arrebentamos as correntes que prendiam nossos antepassados escravizados. Mas ainda falhamos na tentativa de soltar nossos cabelos e mantê-los naturais sem ouvir críticas. 

Eu, por exemplo, cresci ouvindo pedidos para “domar” os cabelos. Na infância, os fios esvoaçantes incomodavam no parquinho. “Fica mais bonitinho preso” era o que diziam carinhosamente antes de me entregarem o prendedor. Era um pensamento dominante. Aliás, como esperar algo diferente dos adultos daquela época, que tinham crescido ouvindo o Luiz Caldas cantando “Fricote”, com a história de uma tal “nega do cabelo duro, que não gosta de pentear”. 

Na minha adolescência, a festa durava só o tempo de a cabeleira secar. Quando os volumes apareciam, a graça ia embora. Às vezes, a frustração com as madeixas vinha antes de tocar “Meu Cabelo Duro É Assim”, música da banda Chiclete com Banana, que marcou vários Carnavais da minha geração.

Aliás, quem nunca viu pessoas erroneamente fantasiadas de “negas malucas”, com perucas que imitam cabelos crespos? A folia passava, elas voltavam a ser quem eram. E eu? Continuava sendo aquela figura que muitos viam de forma caricata. Afinal, eu nasci assim. Entre uma piada e outra, nós, negros e negras, assimilávamos o recado: nosso cabelo definitivamente não era bem visto. Para esconder aquilo que parecia ser um castigo divino, muitos homens cresceram raspando os fios, e nós, mulheres, alisando-os ou os mantendo presos. Era “o cabelo bandido: ou estava preso, ou armado”. Sim, já me contaram essa piada várias vezes. Quem não se lembra de ver alguma amiga molhando os cachos no banheiro no meio da balada ou na escola para que eles não ficassem volumosos? Cenas que passaram despercebidas e que, dia a dia, apagavam parte da nossa origem. 

É importante lembrarmos que os negros escravizados, trazidos à força para o Brasil, tinham os cabelos raspados. A justificativa na época era facilitar a “higienização”. Na prática, perdíamos o nome, a identidade e os cabelos. Um baque tremendo se levarmos em conta que, na África, os penteados eram vistos como uma marca da identidade. Era possível saber a religião, a posição social e uma série de informações sobre os indivíduos pelos penteados. 

E, mais tarde, no século XVIII, foram os cabelos que trouxeram a liberdade para muitos. Na Colômbia, por exemplo, negras usaram todo o conhecimento sobre o trançado dos fios como estratégia de fuga, fazendo mapas com o caminho dos quilombos nas cabeças umas das outras. No Brasil, muitos escravizados esconderam ouro no cabelo e, depois, pagaram pela própria liberdade. Em um passado mais recente, tivemos o movimento Black Power, das décadas de 60 e 70, como um importante instrumento de luta pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos. 

Hoje, muitos passam pela chamada “transição capilar”, abandonando as químicas que modificavam os fios. O poder dos cachos volta a ficar em evidência. Por aqui, depois de anos “domando” meu cabelo, tenho deixado que ele fique exatamente como é. O motivo? Porque eu posso, gosto e quero. O que não me proíbe de voltar a alisar os cabelos. Não porque alguém achou melhor, mas por vontade própria. 
É esse direito de nós, negros e negras, também fazermos nossas escolhas que fica em voga agora em novembro, mês da Consciência Negra. Até porque, não vamos nos deixar aprisionar pelos cabelos. Não mais. 

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