Um filme pode ser contemplado de inúmeras maneiras. Há quem se preocupe com critérios técnicos, como sonorização e fotografia, assim como tem os que se rendem ao roteiro e vivem a trama junto dos personagens. Eu, por exemplo, mesclo um pouco de cada perfil, a depender do filme e do meu humor (quem nunca?). Não, esta coluna não é sobre crítica de cinema. Quero trazer aqui as minhas impressões sobre uma única personagem em um filme que, mais do que assistir, eu vivenciei há uns meses. E o que isso tem a ver com negritude? Calma, pega uma pipoca e aguarda o desenrolar da história. Como faria diante da telona.
Como não sou especialista da sétima arte, os críticos que me perdoem, inclusive posso tratar de um filme nada inédito. Muito pelo contrário, bastante comentado, o “M8: Quando a Morte Socorre a Vida” estreou em dezembro do ano passado. Para quem não teve a oportunidade de assistir, em linhas gerais, o longa-metragem conta a história de um estudante de medicina negro. O jovem, de periferia, é o único estudante preto da sala. Aliás, negros naquela faculdade, além dele, somente os funcionários e os corpos de pessoas consideradas indigentes usados nas aulas de anatomia. Um prato cheio para que ele sofresse preconceito atrás de preconceito e quase desistisse do curso. Pronto, juro que não vou contar o final, porque seria maldade, eu sei. Vai que você está tão atrasado quanto esse comentário e decide assistir ao filme neste fim de semana. Eu não estragaria esse prazer.
Como eu disse, quero falar especificamente de uma personagem e, pasme, não é sobre Maurício, o protagonista. Meu foco é a mãe dele, Cida. Auxiliar de enfermagem, ela não se deixa abater. Orgulhosa ao ver o filho conquistar uma cadeira em uma universidade de medicina, ela passa boa parte da história trabalhando, calculando as contas que precisa pagar, cuidando do jovem ou se conectando com a ancestralidade em um terreiro de candomblé. Rotina que é comum a outras mães solo negras da periferia.
Esse perfil dela já seria suficiente para chamar minha atenção, mas não foi o que me fez sentar e escrever este texto. Até então, eu ainda estava tentando entender qual segredo carregava um dos cadáveres que passou a assombrar o personagem principal e me revoltando com as cenas de racismo contra o estudante.
Menino novo, filho de leoa, Maurício ainda não estava acostumado a encarar a crueldade de pessoas preconceituosas. Mas, lá na faculdade, ele estava sem a Cida. E se abateu. Pensou em desistir. E foi nesse ponto da trama que a mãe dele ganhou de vez a minha admiração. Quando ela insistiu com o filho para que se animasse, ouviu algo do tipo: “Você não faz ideia do que eu estou passando”. É nessa hora que aquela mulher traz a maior lição de todas. Claro que eu não lembro com exatidão o diálogo, mas sei que ela falou para ele algo próximo de: “É sério que você acha que nunca passei ou passo por esse tipo de situação?” E deixou claro para ele que não se questiona dessa forma a história de uma mulher negra. Claro que ela passou por poucas e boas.
Mas a maior lição que eu citei não é a de que negras sofrem preconceito, obviamente, porque isso eu sei por experiência própria. O principal recado passado por ela ao filho e que ficou nas entrelinhas foi algo que eu traduziria assim: “Levanta, vai à luta e não faça exatamente o que os racistas gostariam que você fizesse, que é desistir”. E esse é o recado que quero deixar aqui para vocês negros e negras como eu. Estejam onde racistas acham que não nos caberia. Seja aquilo que historicamente tentam nos tirar a possibilidade de ser. E cuide-se, porque a guerra é longa e dura, e nós bem sabemos que soldado abatido não vence batalha.