SEBASTIÃO NUNES

Romério Rômulo e a sagração do sertanejo urbano

Redação O Tempo


Publicado em 25 de abril de 2010 | 00:00
 
 
 
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Poesia não é profissão nem ganha-pão. Se você encontrar na biografia de qualquer pessoa algo como "profissão: poeta", pode ter certeza de que o cara é vagabundo ou louco. E não é poeta. Mas, se você encontrar o mesmo sujeito ao vivo, olhando para dentro, muito para dentro, pode estar diante de um poeta. E não estará diante de um vagabundo, já que poesia exige, além de experiência de vida e muita leitura, o famoso "ócio criativo", que é quando o cara fica horas e horas pensando coisa nenhuma, ou pensando tudo, ou divagando, ou sonhando, ou quem sabe tudo isso ao mesmo tempo. Drummond se formou em Farmácia, mas ganhou a vida como funcionário público e jornalista. Muitos poetas foram jornalistas ou funcionários públicos (quando não as duas coisas), além de professores. Entre diplomacia e jornalismo, João Cabral escolheu diplomacia, porque "dava menos trabalho", segundo ele mesmo. Destino também de Zuca Sardana e Chico Alvim, dois dos melhores poetas atuais. Joaquim Cardozo, da safra dos grandes pernambucanos, foi engenheiro. Já Romério, meu poeta de hoje, é professor, e ensina matéria que nada tem a ver com poesia: economia política. Será que combina? Se combina, não sei. Mas que dá para conciliar, é claro que dá, conforme tentarei demonstrar, de olho na poesia.

OS SERTÕES
Durante alguns anos, Romério reverenciou e tangenciou Guimarães Rosa e Manoel de Barros, sertanejo que é, nascido nos sertões de Felixlândia, no miolo de Minas. Outros tantos anos foi amigo de Manuelzão, dos mais importantes personagens de Rosa, que chegou a ser mais importante que o finado autor, da mesma maneira como Dom Quixote se tornou mais conhecido do que Cervantes, seu criador.

Com muito trabalho - já que ninguém nasce sertanejo impunemente -, conseguiu se livrar das influências e alçar voo próprio. Como teve parâmetros elevados, começou em nível bastante alto, não sendo nunca "bacurau de voo curto". Seus últimos livros têm a força do poeta maduro, seguro e dono de seu instrumental. Vejamos uma prova, que já está em seu antepenúltimo livro, "Tempo Quando" (dois volumes, Dubolso, 1996).

"o avesso é tão remédio como a noite/ que busca luz num fundo de reveses./ outros seres, metástases do tempo/ soluçam abrangentes, nossas vozes.// como se fossem anos, por mais luzes/ que os avessos dos corpos se contorcem/ rever o tempo do homem, retaguarda/ dos bichos que retorcem sua boca.//outro é viés de tudo, epicentro/ do canto interno, pulso, um outro avesso/ que retomado nos diz saber ser outro/ se tanta luz lhe faz rever os dias".
O tom não é muito diferente dos poemas de "Matéria Bruta" (Altana, 2006), embora a publicação dos livros esteja separada por dez anos de silêncio:

"a chuva que me habita não é chuva,/ é um quadrado oblongo de facetas./ a quina do meu lábio, cada fresta/ há de conter o rasgo destas almas.// as almas que te habitam são tão seres/ que possam mergulhar na tua alma?/ acaso, se carregas, tens um olho/ que sabe a múltipla face do meu rosto?// tentar pode ser mais. e se me levas/ te trago incorporada, último dia".

Três constatações imediatas: o uso de minúsculas no início dos versos, qualquer que seja a pontuação anterior; o gosto pelo decassílabo, com um ritmo sinuoso e quase hipnótico; o jogo permanente de paradoxos, que transformam cada verso num cipoal linguístico difícil de penetrar, exceto através do ouvido (e do olho) refinado.

A MATURIDADE
Acompanhando a trajetória de Romério e relendo sua produção dos últimos livros em conjunto, pude perceber como sua evolução se deu. Não aos saltos, nem através de poemas isolados, mas por ilhas de iluminação poética salpicadas aqui e ali nos primeiros livros, como pontas de icebergs, cada vez mais presentes nos livros recentes, até chegar à primazia absoluta no referido "Matéria Bruta" e no posterior, "Per Augusto & Machina" (Altana, 2009), em que, desde o título, o autor homenageia um de nossos maiores e mais estranhos poetas de qualquer época: Augusto dos Anjos. Como em "uma bravura regenera a noite":

"de quantas nuvens se faz uma loucura?/ é construída a mão que bate o prego?/ as estações do corpo só revelam/ o hábito eloquente do delírio./ que nos corroa a pedra, o visgo louco da agonia!/ desmonte do tamanho, o extirpado dente,/ gengiva em sangue são a mesma face/ do hábito terrível de ser homem.// quanta eloquência travada no meu olho!".

De vez em quando, a beleza poética se deixa carregar de significado, como nos versos absolutamente admiráveis "do hábito terrível de ser homem" e "quanta eloquência travada no meu olho!". Mas o gosto pelo paradoxo continua em outros, como em "de quantas nuvens se faz uma loucura?" e "o hábito eloquente do delírio".

HERANÇA E MISTÉRIO
Em outros momentos, a reverência pela poesia de Augusto dos Anjos é pura e comovedora homenagem, pela apropriação mínima de, digamos assim, motes, como fica claramente explícito neste austero e vertiginoso poema sem título (como a maioria dos poemas de Romério, que ainda podem ser apenas numerados ou com os títulos entre parênteses, depois do último verso):

"para onde fores, pai, se for ainda/ a noite, o epitalâmio da doçura,/ terá aí meu prato de candura/ em vassalagem à tua dor vertente.// meu antro, de altivez tão indecente,/ dirá sou eu aquele que está solto./ o mar que me procelas tão revolto/ nem cabe a minha pele de alvuras".
Diante dessa poesia de elaboração tão elevada e de riqueza desconcertante, a única atitude possível é a de reverência, sem comentários. No entanto, era preciso escrever alguma coisa sobre ela, mesmo que circularmente, mesmo que dando volta em torno dos versos, sem ir a lugar algum. E assim chego à conclusão (como tantos outros chegaram) de que a grande poesia é inapreensível, e sempre escorregadia, pois está sempre sugerindo o indizível, eternamente intraduzível em outras palavras.

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