“Entre os graus 15 e 20 havia uma enseada bastante longa e bastante larga, que partia de um ponto onde se formava um lago. Disse então uma voz repetidamente: ‘Quando se vierem a escavar as minas escondidas no meio destes montes, aparecerá aqui a terra prometida, de onde jorrará leite e mel. Será uma riqueza inconcebível.’”
Esse é um trecho do livro “Memórias Biográficas de São João Bosco”, escrito pelo padre Lemoyne, assistente de São João Bosco. Seria o relato de um sonho de Dom Bosco, como é mais conhecido o santo italiano. Para muitos, principalmente católicos, trata-se de uma profecia da construção de Brasília.
Dom Bosco contou que havia sonhado, em agosto de 1883, com uma viagem pela América do Sul – onde nunca pisou. Passando por entre a Colômbia e o sul da Argentina, teria visto um pedaço do paraíso, onde, segundo um anjo, haveria “riqueza inconcebível”. E ela ficava entre os paralelos 15º e 20º, onde Brasília foi erguida 70 anos depois.
O sonho de Dom Bosco é tão levado a sério em Brasília que a Ermida Dom Bosco foi a primeira obra de alvenaria a ser erguida na nova capital. Projetada por Oscar Niemeyer e localizada às margens do Lago Paranoá, a pequena capela em forma piramidal foi construída em 1957. Dom Bosco virou padroeiro de Brasília, ao lado de Nossa Senhora Aparecida.
Aliás, a Ordem dos Salesianos, fundada por Dom Bosco, foi a primeira a chegar ao Distrito Federal e já estava nos acampamentos dos trabalhadores desde 1956, nos primeiros dias das obras. Para homenagear o santo, anualmente, em agosto, uma procissão de lanchas, iates, veleiros e outras embarcações atravessa o Lago Paranoá. Para os crentes, ele representa o “leite e mel” da profecia, apesar de ser artificial.
Além da Ermida, há o Santuário São João Bosco, que rivaliza com a Catedral de Brasília em importância para os brasilienses e pela imponência. Assim como o outro templo, o santuário, que fica na W3 Sul, principal avenida comercial da cidade, tem vitrais como maiores atrativos. Mas, em vez do teto, eles estão expostos nas paredes que circundam toda a igreja.
Dom Bosco também dá nome à primeira pizzaria de Brasília, que, ainda em funcionamento, oferece um único sabor: muçarela. Vendida em fatia, é tradicionalmente consumida acompanhada por mate gelado. Dom Bosco também é o nome de diversos outros estabelecimentos comerciais brasilienses, dos mais diversos ramos, que alimentam a riqueza naquela que seria a terra prometida.
Um dos maiores pesquisadores da história do Distrito Federal, o historiador Wilson Vieira Júnior, que é doutor pela Universidade de Brasília (UnB), diz não haver prova documental de que o sonho de Dom Bosco se referia especificamente à Brasília. Tampouco que havia tanta riqueza mineral na região onde a capital foi erguida.
Ele diz que a profecia de Dom Bosco “veio como uma luva” para incentivar a construção da nova capital. “Assim como o projeto real de Brasília, o sonho de Dom Bosco falava de esperança, prosperidade e modernidade. Isso num país de maioria católica”, observa. “Se não houvesse a profecia de Dom Bosco, haveria outro mito para estimular a construção de Brasília”, ressalta.
Wilson diz que, apesar de não conter fundamento em fontes documentais, os mitos históricos têm narrativa com significado para um determinado grupo da sociedade. “São elementos mitológicos importantes que fazem sentido para os grupos sociais que têm uma relação identitária com o ambiente que ocupam”, pondera.
O historiador lembra que o ser humano sempre acreditou em mitos. “Isso vem desde a antiguidade, como na Grécia. No caso do Brasil, os portugueses falavam que aqui era um paraíso, desde a sua chegada. Assim também aconteceu com os bandeirantes, que falavam de uma serra dourada em Goiás, onde havia muito ouro. Os mitos servem como elementos motivacionais, inclusive para o engrandecimento de quem está à frente da construção de uma cidade, por exemplo”, comenta. “São construções necessárias para fundamentar um Estado, uma nação”, completa.