Racismo Estrutural

STF retoma julgamento que pode impactar ações penais envolvendo pessoas negras

‘Poder Judiciário aplica um rigor excessivo da lei às pessoas negras’, afirma Nauê Azevedo, advogado que atua no caso

Por Karla Gamba
Publicado em 08 de março de 2023 | 11:10
 
 
 
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Na última semana o Supremo Tribunal Federal (STF) começou a analisar uma ação que pode impactar o entendimento do Poder Judiciário brasileiro sobre processos penais envolvendo pessoas negras. Trata-se de um caso ocorrido na cidade de Bauru, interior de São Paulo, em que um homem foi condenado por tráfico de drogas.  

O processo começa com uma abordagem policial na qual, em seus depoimentos, os policiais destacam que as suspeitas começaram ao “avistar um homem negro”, sem citar qualquer outra característica física. Na abordagem, o homem foi detido com 1,53 gramas de droga e no curso do processo foi condenado por tráfico.  

Após recursos em diversas instâncias buscando sua soltura o processo chegou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), por meio de um habeas corpus. No STJ, o ministro Sebastião Reis levantou questionamentos sobre a ação ter origem em uma abordagem policial baseada em um “critério de raça”. 

Os questionamentos do ministro do STJ fizeram com que a Defensoria Pública do Estado de São Paulo levasse o processo ao Supremo, que agora discute, não só o caso específico, mas também a incidência do racismo em abordagens policiais e sua influência na condenação de pessoas negras. 

Até o momento, o placar está em 3 a 1 pela tese de que, no caso específico, a abordagem policial aconteceu em decorrência do que se chama de perfilamento racial, quando a suspeita parte da raça e não de um comportamento individual. O julgamento será retomado na tarde desta quarta-feira (8).  

O TEMPO conversou com o advogado Nauê Azevedo, que atua como amicus curiae – aquele que participa do processo auxiliando o órgão julgador com o fornecimento de informações – para entender o que está em jogo e os impactos desse julgamento em uma questão tão controversa no Poder Judiciário brasileiro. 

Esse termo ‘racismo estrutural’ se popularizou nos últimos anos. Você poderia explicar o significado? 

O racismo estrutural acaba se popularizando a partir de um livro do professor e hoje ministro [dos Direitos Humanos e da Cidadania] Silvio Almeida e, em síntese, é quando você tem uma sociedade que se funda em uma série de valores eminentemente racista. Aqui no Brasil, a título de exemplo, a gente teve a abolição da escravidão em 1888, mas não tivemos políticas públicas para acolher as pessoas que foram libertas. Com isso essas pessoas deixam de ser objetos e passam a ser absolutamente nada. E a gente ainda teve uma série de políticas que indenizaram os donos de fazenda, que fazem com que essas pessoas [que escravizavam] sejam vistas como vítimas porque perderam sua força de trabalho, enquanto que as pessoas que foram libertadas não têm políticas de trabalho, emprego, moradia, então elas são relegadas à marginalização na sociedade. E essa cultura nunca foi desafiada de uma forma eficiente. Mas, antes de resolver isso, se instaura esse regime de democracia racial, que dizem que a gente vive, e com isso o problema continua, a estrutura continua contaminada, o racismo continua nessa estrutura, e contamina todos nós na nossa tomada de decisão. 

Posso dizer então que o racismo estrutural é esse racismo que contamina todas as estruturas da sociedade, inclusive o Judiciário? 

Inclusive o Judiciário. Hoje, pelo último levantamento do CNJ [Conselho Nacional de Justiça] que nós tivemos acesso, não chegamos a 20% de magistrados negros. Isso é um dado muito importante porque quando você olha para os cargos de elite, que estão no mais alto nível do poder, inclusive a própria composição do Supremo Tribunal Federal, é muito difícil você ver pessoas negras nestes cargos. Agora, quando você olha para garis, motoristas, enfim, é muito mais fácil ver pessoas negras nestes cargos. O que isso quer dizer? Quer os cargos de garis e motoristas são inferiores? Muito pelo contrário, não são inferiores, inclusive, inferiorizam esses cargos de uma forma completamente injusta e desnecessária. A lógica é o seguinte: as pessoas negras ficam relegadas a esses espaços, enquanto que os espaços de tomada de decisão, que podem efetivamente mudar alguma coisa na sociedade, acabam não sendo ocupados por pessoas negras. Então o problema vai persistindo, a situação vai se perpetuando. A gente vê nos números que não é coincidência. Não é só mérito, que a pessoa não chegou porque não quis, é porque tem uma estrutura que segrega pessoas negras de conseguir o acesso a esses espaços. 

O ministro Edson Fachin, que é relator do processo no STF, diz em seu voto que o sistema Judiciário brasileiro ainda não enfrentou a questão do racismo, e cita exemplos de como a pessoa negra é tratada de maneira diferente dentro de um processo. Você concorda que o Judiciário precisa enfrentar essa questão?   

Eu particularmente concordo sim com a tese levantada pelo ministro Fachin. Acredito que seja o início de uma mudança de uma cultura dentro do Poder Judiciário, que aplica um rigor excessivo da lei às pessoas negras em geral, não estou falando apenas deste caso, em que existem outras teses, como a desclassificação para o uso de drogas; a tese da irrelevância, da insignificância daquele tanto de drogas; que não tem porque aplicar uma modalidade tão grande de tráfico para uma pessoa que estava com aquela quantidade de droga; entre outras. Mas, em sentido objetivo, o que se está a discutir é como que se faz a prova, que determina que uma pessoa negra que está em uma situação periférica, em um ponto supostamente de tráfico, parado ao lado de um carro, corresponde exatamente ao ‘modus operandi’ do tráfico. Por que a pessoa negra nessa situação sempre é traficante? O que teria acontecido se fosse uma pessoa branca? 

O ministro Alexandre de Moraes, ao discordar do ministro Fachin, fala sobre o ‘modus operandi’ da abordagem e defende que, nessa situação específica, a polícia agiu seguindo esse ‘modus operandi’, que segundo ele não ocorre só no Brasil, mas em outros países. Como mudar então esse procedimento de abordagem?  

Primeiro, antes de entrar neste ponto: decisão judicial se cumpre e eu manifesto inteiro respeito ao entendimento dos ministros que já votaram, independente da minha posição. Infelizmente, o ministro Alexandre [de Moraes] se equivoca quando ele compara a situação do racismo estrutural como algo que precisa ser feito pela própria pessoa que é ré no processo penal. O ônus da prova é de quem acusa, e o que isso quer dizer? Quer dizer que quem acusa é que precisa levar aos autos elementos suficientes o bastante para dar certeza sobre aquela situação, porque a dúvida beneficia o réu. A tese que o ministro Fachin levanta, de que para se realizar a abordagem é preciso que existam elementos mais fundados, é factível. É preciso que a polícia, até para facilitar o próprio trabalho e conseguir efetuar a prisão de quem realmente trafica, consiga manifestar os seus elementos de segurança e inteligência para que ela possa pegar quem efetivamente trafica. Se é uma zona de tráfico, a polícia tem vários mecanismos, como campana, outros tipos de ronda... Mas a gente nunca pode transformar essa discussão só em um caso de os policiais estavam certos ou errados... 

Há pesquisas que analisam a condenação de pessoas negras e pessoas brancas no cometimento de crimes semelhantes e as penas que são aplicadas? 

Existe não só uma, mas várias. Já ficou demonstrado há muito tempo que pessoas brancas demandam uma quantidade muito maior de droga do que pessoas negras para serem classificadas como traficantes. O risco de uma pessoa negra com uma quantidade inexpressiva de droga ser pega e ser tratada como traficante, a depender do tipo da droga, varia entre duas e 20 vezes mais que do que o risco de uma pessoa branca com a mesma quantidade de droga. 

O que pode acontecer agora a partir desse caso em julgamento no STF? 

Esse processo tem alguns caminhos possíveis. Tem o caminho do ministro Fachin em que se acolhe a tese e também se anula a prisão desse indivíduo, em virtude de se reconhecer que como a abordagem foi feita, a partir do que está nos autos, de um perfilamento racial, ela é irregular e ilegal, então ela contamina todo o resto do processo. 

Mas, caso a tese do ministro [André] Mendonça seja a vencedora, então o habeas corpus não vai ser conhecido e o processo permanece inalterado. Mas o ministro Mendonça, de forma muito nobre, disse que está disponível para debater a tese. Ou seja, ele sai do caso concreto para incidir sobre algo que a gente chama de sentido objetivo, ou seja, se aplica a todo mundo. Embora não seja uma tese de repercussão geral [que se aplica automaticamente aos outros processos que tramitam na Justiça brasileira] é o Supremo dando uma linha de por onde os órgãos de Justiça podem andar. 

A tese ser reconhecida é um avanço muito grande, pois significa que haveria mais critérios e que o próprio instrumento investigativo seria mais eficiente para conseguir realmente levar criminosos para a cadeia. É sobre isso que estamos falando, sobre o conceito de criminoso. E a gente precisa parar de dizer que uma dada pessoa é criminosa porque ela parece que é criminosa, porque a gente sabe onde isso termina. 

Confira aqui a entrevista em vídeo na íntegra:

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