Por cuidado com o tema e por crer que não tomaria as proporções que tomou, só hoje trato da questão da compra de leite condensado e de outros produtos pelo governo federal, que tanto gerou polêmica e piadas nas redes sociais nos últimos dias, além de um desabafo ofensivo por parte do presidente da República. A história, porém, é distorcida desde quase o início.

Primeiro é preciso dizer que, diante dos dados que hoje estão disponíveis, não há nada de tão absurdo na compra de tanto leite condensado, chicletes ou outros alimentos por parte do governo federal. E que isso não é, como bem diz o governo, para abastecer o Palácio da Alvorada ou o Palácio do Planalto. É para ministérios e para grandes contingentes das Forças Armadas. Há, no caso de alguns produtos e, em especial, do leite condensado, inclusive, volumes maiores comprados por governos anteriores, inclusive os comandados pela oposição que agora faz disso um cavalo de batalha.

Além do mais, as cobranças de que há superfaturamento de latinhas, pelo fato de aparecer duas caixas no valor total de R$ 324, também não são exatamente corretas. Trata-se de duas caixas com 27 latinhas. Valor compatível com o mercado, portanto, não havendo nesse ponto específico problema claro também.

Há também quem questione por qual razão compra-se tanto leite condensado ou chicletes. A explicação do Ministério da Defesa trata do valor energético do produto para quem faz tanta atividade física e sobre o uso dos chicletes para melhorar a saúde bucal das tropas. Pode-se até questionar se a escolha foi adequada, mas estaremos numa discussão nutricional ou odontológica, nada tendo a ver com as contas públicas.

Todas essas observações, porém, não são capazes de encerrar as dúvidas sobre o assunto. É preciso de fato investigar alguns pontos dessa história. Um deles é o fato revelado pela revista Crusoé de que empresas de familiares de um membro das Forças Armadas firmaram contratos de R$ 45 milhões para fornecimento de produtos, e que as empresas não teriam porte para tal. Evidentemente é um negócio que precisa ser bem esclarecido. Houve favorecimento ou superfaturamento? A transparência dos gastos públicos permite que se dê um pontapé inicial nas suspeitas, mas só um estudo mais aprofundado por órgãos de controle pode destacar se há alguma irregularidade aí. Que é estranho, certamente é.

Independentemente da regularidade ou não das compras, porém, é evidente que a resposta do presidente Jair Bolsonaro à questão foi a pior possível. As grosserias, palavrões e ofensas proferidas por ele contra a imprensa são injustas e incompatíveis com o decoro para o cargo, afinal, ele representa o país. Numa análise mais dura, seria até crime de responsabilidade (proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo), embora seja óbvio que ninguém fará um impeachment do presidente por ser mal educado.

A ação de Bolsonaro contra a imprensa é ainda mais injusta pois a reportagem que deu origem a toda essa história não é responsável por toda a celeuma nas redes sociais em torno do leite condensado. A interpretação dela gerou toda essa polêmica, mas a reportagem do Metrópoles apenas aponta o aumento global dos gastos com alimentação (o que pode até ser explicado em parte pela inflação dos alimentos), enfatizando que tratava-se de uma compra para o governo como um todo, e não para o Palácio da Alvorada, com as respostas das autoridades e uma lista de compras. O leite condensado foi pinçado da lista pelas pessoas (e não pela reportagem) apenas pelo fato de o presidente ser conhecido por usar para passar no pão em um café da manhã insólito. Não foi, portanto, a imprensa, quem distorceu a realidade das compras governamentais. Mas o presidente sentiu-se no direito de atacar os jornalistas ou porque os odeia ou porque é incapaz de ler o que foi dito, tendo sido apenas contaminado pelo sentimento que tomou o assunto nas redes. Ou seria pelo fato de haver aí ainda algo a ser descoberto e que lhe tira o sono?