O estigma contra a mifepristona, medicamento há décadas utilizado para induzir o aborto, impede que ele seja visto como potencial tratamento preventivo para o câncer de mama, aponta artigo publicado na revista Lancet Obstetrics, Gynaecology & Women's Health este mês.

A substância recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para a interrupção de gravidez - especialmente em combinação com o misoprostol - também já foi apontada por estudos pré-clínicos limitados como uma forma de reduzir o risco do tumor, o maior causador de mortes por câncer entre mulheres no mundo. No entanto, por ser largamente associado ao aborto, farmacêuticas relutam em investir no fármaco, apontam os autores, pesquisadores de universidades europeias.

Há também uma preocupação por parte dos países com acesso restrito ao aborto em disponibilizar o medicamento, o que impõe desafios à pesquisa, incluindo barreiras legais e acesso dificultado mesmo para fins de estudos.

Três estudos laboratoriais já realizados descobriram que a substância pode retardar o crescimento celular no tecido mamário. Isso ocorre porque a mifepristona inibe os efeitos do hormônio progesterona, um impulsionador do crescimento celular.

O mecanismo de ação para cada procedimento depende do momento da administração, se acontece durante o ciclo menstrual ou na gravidez, bem como da dosagem, diz à Folha a autora Kristina Gemzell Danielsson, professora no Instituto Karolinska, na Suécia.

"No aborto, o bloqueio da progesterona levará ao aumento das contrações uterinas e à expulsão da gravidez. Durante o ciclo menstrual, dependendo da dose de mifepristona, ela pode inibir a ovulação e/ou a receptividade endometrial e, assim, impedir a fixação do embrião", explica.

Para a prevenção do câncer, o medicamento seria especialmente útil para mulheres com alto risco de desenvolver a doença, como as com mutação BRCA, alteração genética em genes que reparam o DNA. Hoje, a opção mais comum para mulheres que identificam a mutação é a cirurgia de redução de risco, com a retirada da mama.

"Em alguns países, medicamentos que bloqueiam o estrogênio também são aprovados. Mas esta opção não demonstrou reduzir a mortalidade e tem efeitos colaterais que prejudicam a adesão ao tratamento", acrescenta Danielsson. Ambos também têm, frequentemente, efeitos colaterais indesejados.

A mesma dificuldade de acesso devido à falta de interesse de órgãos de financiamento e da indústria farmacêutica já aconteceu também com outras drogas, aponta Fátima Marinho, especialista em medicina preventiva.

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É o caso do talidomida, fármaco utilizado nos anos 50 que, depois de ser ligado à deformidades congênitas em fetos, foi retirado do mercado. "Depois se descobriu que a talidomida, hoje já usada, serve para hanseníase. Mas foi difícil, houve muita resistência".

Uma possível solução apontada para derrubar a barreira é a separação regulatória mais clara entre as aplicações reprodutivas e não reprodutivas da mifepristona, juntamente com uma defesa mais forte de isenções para uso em pesquisa.

Os pesquisadores reforçam que é necessário um investimento científico, além de apoio político de governos para expandir as opções para reduzir o risco desse tipo de câncer.

"A mifepristona tem potencial para uma série de aplicações clínicas dentro da saúde reprodutiva, incluindo o tratamento de miomas, servindo como contraceptivo sem estrogênio e tratando condições como síndrome de Cushing e meningiomas. No entanto, a maioria dos estudos que exploram essas aplicações foi realizada há décadas. É necessário um novo investimento científico para avançar nos esforços de reaproveitamento do medicamento, inclusive na área de prevenção do câncer de mama", dizem no artigo.