O caso do lateral-direito Daniel Alves, preso na Espanha por suspeita de estupro e abuso sexual de uma jovem, tem sido destaque na mídia internacional nos últimos dias. Mas a situação do jogador brasileiro não deve ser enxergada como 'fato isolado'. Há outros vários exemplos de jogadores famosos no Brasil envolvidos também em crimes graves.

Na visão de especialistas consultados por O Tempo Sports, são vários os fatores que podem ajudar a explicar o envolvimento de estrelas do futebol em crimes. O primeiro deles está ligado às falhas na formação dos atletas, desde as chamadas categorias de base.

"É importante analisar o contexto social e histórico em que o futebol se desenvolve no nosso país. Cada dia mais jogadores com pouca idade iniciando a carreira. No sub-15, por exemplo, ainda estão em fase de formação de pessoa, do caráter. E acabam inseridos em um ambiente onde o que conduz é o dinheiro", analisa Thiago Costa, advogado especializado em direito desportivo.

"Tem uma série de 'atores' dos bastidores envolvidos que só se preocupam com a formação do atleta e não do cidadão. O foco principal é esse. O que rege é o dinheiro e ser bom de bola. O pessoal se esquece do mais básico, a formação desse jogador", acrescenta Costa.

Clubes têm parcela de culpa

Thiago ressalta que a legislação atual exige que os clubes prestem apoio psicológico aos jovens, mas diz que na maioria das vezes isso é negligenciado.

"A gente vê tanto falar em profissionalização do futebol, SAF, investidores, mas esquece que ali são pessoas. E a formação delas? Existe uma pessoa que precisa desse empurrão para formar seu caráter. Quando fala de jogador de futebol, mais ainda",  pontua o advogado.

"Atleta em formação tem que ter esse cuidado do ponto de vista legal, mas, na prática, não acontece. Em grandes clubes até tem uma questão mais presente, com escola, acompanhamento psicológico. Mas isso é exceção, não regra. Pela própria natureza da formação dos jogadores, existe essa falha, falta apoio para formação de caráter, da pessoa", acrescenta o sócio do escritório MPC Advogados.

"Se acham quase super-homens"

Doutor em psicologia do esporte pela USP e presidente da Associação Paulista da psicologia do Esporte, João Ricardo Cozac, que trabalha na área há mais de 30 anos, tem visão semelhante.

"O Estatuto da Criança e do Adolescente exige que os clubes ofereçam suporte psicológico para jovens jogadores nas categorias de base. Mas os trabalhos psicológicos na base olham muito mais nas esferas competitivas, nos fatores psicológicos que atuam dentro das competições e no formato coletivo, muito pouco no individual. Na minha visão, falta trabalho de prevenção e promoção de saúde mental já nas categorias de base. É preciso ter um olhar para além do esporte e sim na formação de seres humanos bem adaptados no ambiente social", ressalta Cozac.

Na visão dos especialistas, a série de falhas geralmente também prossegue no momento em que os jovens atletas assinam seus primeiros contratos como profissionais. 
 
"É importante destacar que a maioria dos jogadores são de origem humilde. Vinham de família que ganhava um salário mínimo, meio salário, e passam a ganhar milhões. A partir do momento que se incluem nesse mundo de cifras milionárias, acabam assimilando a falsa ideia de que o dinheiro é que move o mundo, têm ideias de que são quase 'super-homens'. Acaba construindo na cabeça desses meninos a ideia de que podem fazer tudo", lamenta Costa. O psicólogo João Cozac também destaca essa questão. 

Combinação destrutiva

"Acredito que há uma falha na formação dos jogadores e principalmente de atletas que vem de famílias com menos condições sociais, culturais, educacionais, financeiras. Atletas que vem de experiências muito complexas no campo familiar. E aí buscam o sucesso e a independência financeira e acabam não se adaptando bem diante da nova realidade. Isso acontece principalmente quando os atletas começam a ter fama, sucesso e reconhecimento", elucida Cozac. 

"Há atletas que estão em categorias de base ganhando um ou dois salários mínimos e, de repente, num período de 12 a 24 meses, estão ganhando 30, 40 salários mínimos. E aí não dá tempo pra você processar toda essa mudança. E se você não tem uma base, um desenvolvimento psicossocial adequado, facilmente o atleta pode se perder no emaranhado da fama, da vaidade, da falta de empatia e, sobretudo, na certeza que eles vivem de que podem tudo, com todos, a qualquer momento, e que eles são o centro da atenção e todo o mundo gira em torno deles", enumera o psicólogo.

"Se você tem um distanciamento muito longo e muito rápido entre as suas bases de origem e o que você se tornou com 20, 22, 24 anos, é muito difícil que você não desenvolva o que a gente chama de comportamentos desviantes. São comportamentos fora do campo do respeito social, dos limites, principalmente. São pessoas que muitas vezes crescem sem a noção do limite, acreditando que podem tudo a qualquer momento, porque são ídolos e milionários. Isso forma uma combinação perigosa e potencialmente destrutiva", acrescenta Cozac.
 
Este círculo vicioso também acaba sendo reforçado inclusive pela postura de atletas de renome. "Jogadores famosos, que deveriam dar o exemplo, não dão, como acontece agora no caso do Daniel Alves. Esses meninos entram nesse mundo de que tudo vale, que tudo é festa. No momento de construir a percepção e discernimento do que é certo ou errado, passam a entender que pode fazer de tudo, tudo pode acontecer. E isso vai virando uma bola de neve. Ficam achando que estão acima do bem e do mal", avalia Costa.

Sensação de impunidade é grande

Por fim, outro fato apontado como um dos elementos para o envolvimento de jogadores famosos em crimes é a crença de que a justiça no Brasil é lenta e até mesmo seletiva.

"Não posso ser leviano. Pessoas com um alto poder aquisitivo têm mais ferramentas em todos os aspectos, inclusive no aspecto jurídico. Daí muitos podem ter essa crença de que a justiça de nosso país não é célere", lamenta Costa.