Com praticamente metade da Série B do Campeonato Brasileiro superada, o Cruzeiro vai dando mostras de que o retorno à elite do futebol nacional se tornou realidade pela primeira vez, após a queda em 2019. O time comandado pelo técnico Paulo Pezzolano lidera com folga o certame e tem 95,7% de chance de acesso, conforme levantamento da UFMG. No entanto, os danos causados pela ex-diretoria, que levaram o clube à pior crise dos seus 101 anos, continuam impactando. Embora o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) tenha denunciado, em 6 de novembro de 2020, três ex-dirigentes e outras seis pessoas ligadas a eles por cometimento de crimes de falsidade ideológica, apropriação indébita e formação de organização criminosa, ninguém foi punido até então. Morosidade que provoca em torcedores revolta e indignação, acompanhadas das sensações de impotência e impunidade.
“Em muitos casos, o Ministério Público até tenta a condenação por crimes mais genéricos, como estelionato, apropriação indébita, gestão temerária. Contudo, quem acompanha o futebol sabe que o trâmite para a condenação é complicado. A nova lei facilita o caminho para punir esse tipo de crime”, explica Andrei Kampff, jornalista e advogado especializado em Direito Desportivo.
A “nova lei” mencionada pelo advogado é o Projeto de Lei 68/2017, aprovado por unanimidade pelo Senado, no último 8 de junho, que atualiza a Lei Pelé e consolida todas as demais já existentes, com o intuito de promover aperfeiçoamentos no marco legal que regulamenta a prática desportiva no país.
No caso específico de gestões consideradas temerárias ou corruptas nas entidades esportivas privadas, o PL promete ser mais efetivo na punição aos envolvidos, com pena de dois a quatro anos de reclusão, além de multa. Algo que José Maria Marin, ex-presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), conheceu de perto. O ex-cartola foi preso em 2015, durante estadia em hotel na Suíça, e condenado pela Justiça dos Estados Unidos , em 2017, a quatro anos de prisão pela conduta lesiva enquanto presidiu a CBF (2012-2015). A corrupção privada é crime tipificado no ordenamento da Justiça dos Estados Unidos. Por isso, Marin foi preso e condenado, já que o dinheiro passou por aquele país. No Brasil, apontam especialistas, dificilmente ele seria punido.
Além da pena em regime fechado, Marin foi obrigado a devolver 3,3 milhões de dólares e pagar multa de 1,2 milhão de dólares à Justiça norte-americana. Comprovou-se que o ex-cartola recebeu propinas de empresas, em troca da liberação de contratos para a transmissão de televisão e ações de marketing de competições, como as Copas América e Libertadores, enquanto dava as cartas na CBF .
Depois de cinco anos trancafiado na Suíça e nos EUA, Marin foi autorizado a voltar ao Brasil em abril de 2020, beneficiado pela redução de pena concedida pela Justiça norte-americana, em função da idade do condenado, 87 anos à época, e da pandemia da Covid-19.
O advogado Wladimyr Camargos é membro da Comissão de Juristas instituída em 2015 e relator do texto que foi entregue ao Senado, onde foi aprovado sob a relatoria da senadora e ex-jogadora de vôlei Leila Barros (PDT-DF). Na avaliação do especialista, o novo texto garantirá a efetividade das sanções impostas a envolvidos em casos de corrupção.
“A partir do momento em que a lei for aprovada, o crime de corrupção privada no esporte passa a valer também. Então, qualquer ato que se configure como criminoso nesse sentido de malversação de recursos de clubes, federações e confederações, mesmo que não tenha recursos públicos envolvidos, poderia vir a ser tipificado como crime. Lembrando que no Brasil, atualmente, não há qualquer tipo de criminalização da corrupção privada em nenhuma área. O esporte seria pioneiro", ressalta Camargos.
"Os casos passados não podem, obviamente, serem abarcados por um novo dispositivo legal, mas poderíamos dizer que casos parecidos, como ‘Fifagate’ (episódio que levou José Maria Marin à prisão nos EUA) e outros que aconteceram no Brasil, se fossem praticados depois da vigência da lei, seriam bons exemplos, sim, de possíveis primeiras condenações por crime de corrupção privada”, complementa Camargos.
Outro avanço considerado importante na nova regulamentação esportiva no Brasil é o combate ao racismo, à xenofobia, à homofobia e à intolerância no esporte, especialmente nos estádios de futebol. O projeto instituiu a Autoridade Nacional para Prevenção e Combate à Violência e à Discriminação no Esporte (Anesporte), para formular e executar políticas públicas nesse sentido, bem como aplicar sanções a pessoas, associações, clubes ou empresas que praticarem intolerância no esporte. As multas variam de R$ 500 a R$ 2 milhões, dependendo do grau da infração, inclusive com possibilidade de banimento de arenas esportivas por até cinco anos.
“Sobre a efetividade da punição a racismo, xenofobia, homofobia, é preciso lembrar que tudo isso no Brasil já é crime. O que o projeto faz é reforçar o combate a essas práticas, seja por meio da conscientização, seja também por aplicação de multas como já ocorre na Europa. Às vezes, uma sanção não é uma punição pecuniária, uma multa. Algo que dá até mais resultado do que outros tipos de penas. Então, propusemos no projeto a criação do Observatório Nacional e da Violência no esporte, que não seja apenas a conscientização, mas com punições e multas pesadas”, esclarece o jurista.
A senadora Leila Barros confia que a Anesporte será importante na elaboração de um plano eficaz de combate à violência e à discriminação, bem como capaz de monitorar a execução desse plano. “Acredito que qualquer mudança profunda de hábitos e mentalidade depende de ação contínua e embasada em fatos. Espero que a nova Lei possa contribuir muito na redução da violência e da discriminação no esporte e na vida em geral”, vislumbra Leila, ganhadora de dois bronzes olímpicos, em Atlanta (1996) e Sidney (2000).
“Não avalio que, por si só, o PL 68 trará mais rigor para as punições por atos discriminatórios. No entanto, deixará mais fácil o caminho para a interpretação do caso concreto. Um dos grandes avanços da Lei é tratar o esporte de maneira sistêmica. Ou seja, ele unifica a legislação esportiva, Estatuto do Torcedor, Lei Pelé, Lei de Incentivo, entre outros. Tudo se transforma em um documento só, que conversa e se entende. Como se fosse um grande Código do Esporte”, pondera Andrei Kampff.
Ele acrescenta, porém, que a iniciativa propicia avanços importantes na regulamentação esportiva. "É uma notícia importante para o direito e para todos aqueles que se interessam pelo jogo muito além das quadras, campos e pistas. A aprovação é o caminho para vencer a desesperança”, projeta.
Liberdade de expressão
Em setembro de 2020, a jogadora Carol Solberg criticou o presidente Jair Bolsonaro (PL), após conquistar a medalha de bronze no Circuito Nacional de Vôlei de Praia. A Confederação Brasileira de Vôlei (CBV) “torceu o nariz”, denunciando-a ao Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) por manifestação política. A 1ª Comissão do STJD puniu a atleta com uma advertência. Na ocasião, Carol reclamou do fato de não haver nenhuma lei para defender a liberdade de expressão dos atletas.
“O caso da Carol Solberg é exemplar. Com essa Lei, aquela discussão jamais será possível. Para mim, algo que só reforça um compromisso que o esporte já deve ter, uma vez que ele não se separa do direito, muito menos da proteção de direitos humanos. A liberdade de expressão já é um direito universal, reforçado pela Constituição Brasileira. O que o PL fará é reforçar o compromisso do esporte de proteger essa liberdade, impedindo que as entidades esportivas coloquem em regulamento internos freios a esse direito, à liberdade de pensamento de técnicos, atletas e dirigentes”, reforça Kampff.
Clubes comemoram PL da Câmara; jogadores se revoltam
Após a aprovação no Senado no mês passado, o PL 68/2017 foi enviado para tramitação na Câmara dos Deputados. Nesta Casa legislativa, outros projetos já se encontravam em andamento com o mesmo objetivo de atualizar a Lei Pelé. O deputado Felipe Carreras (PSB-PE) tomou o Projeto de Lei do Senado como base e apensou outros textos relacionados ao esporte. Algumas modificações foram feitas e instituiu-se o PL 1153/2019, relatado por Carreras e aprovado na Câmara no último 6 de julho. Como o documento sofreu modificações, retornou ao Senado para nova apreciação.
“Foram feitas algumas alterações, mas, na essência, mantiveram o que foi aprovado no Senado. Não houve grandes mudanças e as mais sensíveis são na área trabalhista”, observa Wladimyr Camargos.
Uma das mudanças é a redução e o parcelamento no pagamento da cláusula compensatória desportiva, no caso, a multa devida quando o contrato é rompido antes de expirar. Pela Lei Pelé, o atleta dispensado tem direito a 100% dos valores pactuados (salários, férias e verbas trabalhistas) até o fim da relação trabalhista. O texto aprovado na Câmara permite aos clubes a redução em 50% da multa, em casos de contratos superiores a um ano de duração, além de possibilitar o parcelamento dos valores da rescisão.
Um dia após a aprovação desta medida, vários jogadores de diversos clubes brasileiros iniciaram um movimento nas redes sociais para demonstrar a insatisfação e a revolta. A categoria entende tratar-se de supressão de direitos trabalhistas.
Na ação intitulada “União dos Atletas de Futebol - Séries ABCD”, os boleiros se posicionaram. “A Lei Geral do Esporte é excelente em vários aspectos. Mas, em relação a nós, atletas de futebol, ela nos fere, retira diversos direitos trabalhistas conquistados ao longo dos anos. Na Câmara, somente os clubes foram ouvidos. Tivemos perdas nos direitos trabalhistas e não iremos nos calar. Nossa classe está unida e juntos temos voz. No Senado, precisamos ser ouvidos e vamos lutar por isso”, diz o texto-padrão reproduzido nos perfis dos boleiros. (inserir posts dos jogadores)
Em lado oposto, vários times foram à internet elogiar a mudança, a exemplo dos mineiros América e Atlético. “Nós apoiamos!”, inicia a postagem, para afirmar que defendem o que interpretam como aperfeiçoamento e modernização na legislação esportiva nacional. “A proposta não retira nenhum direito trabalhista”, avalizam os clubes. (inserir posts dos clubes)
O deputado Felipe Carrera, por sua vez, assegura que a categoria foi ouvida, por meio de diversas audiências públicas com representantes dos atletas. “O dispositivo incluindo no texto é para dar equilíbrio e sustentabilidade para os clubes e o futebol brasileiro”, justifica o parlamentar.
“Há pontos que são nefastos aos jogadores. Queremos discutir esse tema da rescisão. Diminuir (a rescisão) só para 50% é equivocado, errado e mexe em direitos trabalhistas”, questiona a deputada Fernanda Melchionna (PSOL-RS).
O senador e ex-jogador Romário também se posicionou contrário às mudanças no PL que impactam na legislação trabalhista. Na postagem feita pelos atletas, o Baixinho pondera que o texto seja vetado em parte, por afrontar princípios trabalhistas e supressão de direitos de atletas de futebol profissional.
Embora tenham se posicionado favoráveis às mudanças na Lei, América e Atlético foram procurados, mas preferiram não se manifestar. O Cruzeiro, mesmo sem ter tornado público sua avaliação sobre o tema, optou por não comentar. “Não há previsão nesse sentido”, resume o clube, por meio da assessoria.
O Clube Atlético Mineiro apoia o aperfeiçoamento e modernização na Legislação Esportiva Nacional por meio da relatoria do Deputado Felipe Carreras do projeto de lei 1153/2019.
— Atlético (@Atletico) July 6, 2022
A proposta não retira nenhum direito trabalhista. pic.twitter.com/huARfrrV70