Um frutinho roxa foi a responsável por colocar o Pará nos quatro cantos do Brasil. A partir do final dos anos 1990, ela se arriscou a ir para além do Pará. Hoje, não há uma esquina de uma cidade brasileira em que não se encontre uma açaiteria. A fruta teve origem na Feira de Açaí, um canto escondido do Mercado Ver-o-Peso, onde barcos com cestos lotados da fruta chegam nas altas horas da madrugada, num ritual que se repete desde os tempos da colonização. No Pará, o açaí é refeição combinada com peixe frito, camarão, charque ou farinha. No resto do país, adocicado e industrializado, é sobremesa. No passado, a fruta se constituiu em base alimentar poderosa para indígenas, colonizadores, escravizados e ribeirinhos. Hoje, mais de 1 milhão de toneladas de açaí são produzidas por ano, sendo 95% no Pará. Os açaizeiros se assemelham a palmeiras, podem chegar a 20 m e produzem quatro cachos por ano.
Mas não só de açaí vive a culinária paraense. Chefs como Saulo Jennings e Thiago Castanho, só para citar alguns, colaboraram para a divulgação dos produtos amazônicos, como tucupi, jambu, tucumã, farinha de tapioca, farinha d’água, cupuaçu, bacuri, bacaba, pupunha, muruci, taperebá etc. Visitar Belém é fazer uma outra viagem: experimentar pratos como pato no tucupi, maniçoba, caruru, tacacá, arroz paraense, arroz de pato e farofa de charque, sem medo de ser feliz. O passeio pela culinária paraense nunca fica completo sem experimentar o chocolate amazônico. Apesar de originário da Amazônia, foi na Bahia que ele ganhou fama. Segundo o chocolatier Fábio Sicília, da Gaudens Chocolate e do Famiglia Sicilia, o município de Medicilândia, na região transamazônica, é a maior produtora de cacau do Estado, com 3.000 produtores e uma produção média de 50 mil toneladas por safra.
O tour culinário por Belém deve começar pelo restaurante mais regional da cidade, o Ver-a-Açaí, que possui unidades nos bairros Umarizal e Marco. Ambos têm a proposta de introduzir o visitante à rica cultura paraense. A visita começa por um tour pelos 12 espaços da casa, todos temáticos, com referência explícita à cultura amazônica. O proprietário, Maurício Façanha, reuniu em um lugar diversos elementos da cultura paraense. Sob a sombrinha do projeto Ver-a-Amazônia, inspirado no Ver-o-Peso, nasceram o Ver-o-Açaí, o Ver-a-Cerva, o Ver-a-Cana e o podcast Ver-O-Papo (hoje Papo Amazônico). “Na casa de qualquer paraense, tem um chef de cozinha. Ele faz a melhor maniçoba, o melhor pastel, o melhor charque ou o melhor açaí. Quando fiz o projeto Ver-a-Amazônia, queria mostrar a Amazônia, porque as pessoas lá embaixo a veem de uma maneira diferente da que eu vejo”, diz.
Os espaços do Ver-o-Acaí, em ambas as unidades, são cenograficamente bem-construídos e reproduzem elementos da cultura paraense: estão lá a vila ribeirinha, a casa do caboclo, o Mercado Ver-o-Peso, as expressões populares, um aquário como a ilha do Combu, a representação do Círio de Nazaré, a pesca do mapará, de Cametá, um empório com produtos locais, o movimento cultural odivelismo, o Festival Boi de Máscaras, de São Caetano de Odivelas, o artesanato de miriti, os bordados à mão com lendas da Amazônia, a representação da ilha do Marajó, o pau do turu, molusco que vive nos troncos das árvores, artesanatos marajoara, bragantinos e tapajônicos. “Queria que o restaurante representasse culinária e cultura. E mostrar isso na mesa, na parede, no teto, na fala, no conhecimento. Porque não quero servir comida, mas experiência, não quero servir prato, mas lembrança”.
Enquanto o Ver-o-Açai destaca a culinária 100% da Amazônia, o Ver-a-Cerva funciona como gastrobar. Peça como entrada o menu degustação regional, que vem com minitacacá, casquinha de caranguejo, bolinhos (maniçoba, piracuí, pastel de vatapá), três pratos à escolha – entre vatapá, arroz de pato, arroz paraense, maniçoba, caruru e arapuca de mexilhão – e minissobremesa, um pudim de açaí. Para acompanhar o regabofe, o tacacá da Lia (batida de taperebá com cachaça de jambu e vodca, finalizado com toque de limão-siciliano, que vem em uma cumbuca) ou o Mulher Cheirosa (que leva o bacuri). Mais regional, impossível! No Ver-a-Cerva, experimente a cerveja do bar e a cachaça de jambu, antes do prato marajoara, filé de búfalo à parmigiana, ou do petisco X-matapi, sanduíche de camarão-rosa com jambu. Como sobremesa, Delícia Medicilândia, chocolate branco com castanha-do-pará.
Outro restaurante regional que oferece um passeio pela culinária paraense é o Manjar das Garças. O bufê capricha nos pratos e nas sobremesas ao preço de R$ 27 o quilo: na entrada, saladas com frutas amazônicas e petiscos, como o dadinho de tapioca; no prato principal, maniçoba, pato no tucupi, tacacá, pirarucu a casaca, caldeirada, caruru, vatapá, arroz paraense e camarão. Para a sobremesa, as opções incluem pudim de castanha-do-pará, cheesecake de açaí, mousse de cupuaçu e coroa de bacuri. Tudo em um salão amplo e com atendimento perfeito, com vista para a natureza. A arquitetura em madeira e o local onde está inserido o restaurante são extremamente bucólicos e agradáveis.
Se a ideia é uma culinária mais contemporânea, sem perder o toque regional, o Famiglia Sicilia promove a cozinha ítalo-amazônica com refinamento e sofisticação. Os irmãos ngela e Fábio Sicília nos convidam para uma experiência gastronômica repleta de sabores. Comece com os pães caseiros acompanhados de manteiga aromatizada, casquinha de filhote servida com farofa com manjericão ou a burrata servida com molhos italianos. Emende com o filé marajônico com queijo do marajó gratinado e risoto de feijão Santarém, finalizando com uma minidegustação de chocolate. Tudo pode ser acompanhado de um drinque ou um vinho. A chef ngela aprendeu os segredos da cozinha de raiz ainda pequena, com a mãe. O resultado de tanta dedicação foi representar Belém como Cidade Criativa da Gastronomia e ganhar um notável segundo lugar como prêmio com seu ravioli de maniçoba, servido com farofa.
O irmão Fábio Sicilia, formado em gastronomia pelo Italian Culinary Institute for Foreigners (ICIF), de Piemonte, na Itália, transformou uma paixão em negócio bem-sucedido. Chocolatier com muita experiência, ele introduz os visitantes aos aromas e sabores do cacau amazônico, produzindo o próprio chocolate na Gaudens de forma sustentável e beneficiando toda a cadeia produtiva. A produção é toda artesanal para garantir que não haja nenhuma perda de qualidade, e os produtos são escolhidos a dedo. O fascínio pelo chocolate fez com que ele ousasse, há mais de 12 anos, incorporando ingredientes locais à produção de seus chocolates. “Eu troquei o floco de arroz pela farinha de tapioca e criei a crepioca”, conta. Hoje, a Gaudens produz chocolate com cupuaçu, bacuri e açaí, utilizando apenas açúcar orgânico, o demerara, mais saudável e refinado. As adaptações exigiram anos de testes até chegar à alquimia perfeita.
No menu degustação que oferece no Famiglia Sicilia, ele instiga o visitante a sentir os aromas e degustar o chocolate com calma, permitindo que o gosto e a textura fiquem mais tempo na boca. Na régua de degustação, experimentam-se o chocolate ao leite com manteiga de cacau e cumaru; o chocolate branco sem cumaru; o chocolate com crocância da farinha de tapioca, acidez e sabor de bacuri, que Fabio define como “o mais caro e elegante”; o chocolate branco-escuro feito com açaí; o chocolate com farinha de tapioca, ácido e com cupuaçu (a crepioca, já premiada pela Academy of Chocolate de Londres como uma dos melhores do mundo); o chocolate com gosto de chocolate ao leite; e chocolates com 53%, 62%, 71% e 80% de cacau em diversas misturas e sem o amargor. Para finalizar, oferece a castela, o creme de castanha-do-pará com cacau, uma de suas invenções que deram certo e conquistaram o paladar dos clientes.
Um viajante não pode sair de Belém sem experimentar um de seus melhores e mais surpreendentes restaurantes. O Sushi Ruy Barbosa promove, em um ambiente de requinte e serviços personalizados, a combinação improvável da culinária japonesa com os sabores únicos do Pará, em um cardápio onde imperam a qualidade, a criatividade e a inventividade do chef. Comece com uma pipoca de camarão crocante com molho picante de sriracha ou os anéis de lula crocante aos três molhos – shoyu especial, queijo e redução de limão-siciliano – e avance para o combinado regional. Finalize com a Ciranda, uma seleção de minissobremesas da casa. Tudo é preparado nos mínimos detalhes pelos chefs Raylson Ramiro e Hailton Silveira e levado à mesa por colaboradores atenciosos e bem-informados. O extenso cardápio já revela que você não está em um simples restaurante japonês, mas em um lugar de descobertas.
O sushi e o sashimi são preparados com peixes da região, frescos, e combinam com drinks refrescantes, como o Red Fruits e o Pinky Energy. O espaço do Sushi Ruy Barbosa é integrado perfeitamente à proposta culinária – o toque contemporâneo está também na parede de plantas amazônicas na entrada, criada em colaboração com o museu Emílio Goeldi, e no salão todo envidraçado, com vista para a rua. A apresentação dos pratos é quase uma obra de arte. Há uma variedade de combinações de hotmaki, rolls, uramakis, tenakis, niguiri e sushis, dos mais tradicionais às sugestões do chef, inclusive alguns trufados. Os combinados apostam em versões veganas, sem arroz, kids e regional. Para agradar a todos os paladares, o restaurante de comida japonesa e paraense amplia o cardápio, abarcando terra e mar. Os preços não são tão generosos, mas o Sushi Ruy Barbosa vale cada centavo gasto, até porque talvez você demore a ter essa experiência de novo.
Onde comer
Famiglia Sicilia: avenida Conselheiro Furtado, 1.420, Batista Campos, Instagram / @famigliasiciliaoficial
Manjar das Garças: rua Carneiro da Rocha, s/nº, Cidade Velha, Instagram / @mangaldasgarcas
Tap House Ver-a-Cerva: travessa Angustura, 3.220 A , Marco, Instagram / @veracervabelem
Ver-o-Açaí: travessa Dom Pedro I, 599, Umarizal e avenida Rômulo Maiorana, 1.677, Marco, Instagram / @veroacaibelem
Sushi Ruy Barbosa: travessa. Rui Barbosa, 1.816, Batista Campos, Instagram / @sushiruybarbosa