A memória não é mais grande coisa. Então, desde a semana passada, me empenho para recuperar cada detalhe do que ficou gravado definitivamente na matéria que me faz jornalista. As fotos postadas pela Alexandra são um alento para esse esforço e me ajudam a lembrar, inclusive, quem eu era naquela tarde de 1998. Uma pós-menina cujas bochechas denunciam a proximidade com a adolescência e a cinco minutos de ter um daqueles encontros que valem por uma carreira, que, no meu caso, dava ainda os mesmos passos inseguros e cambaleantes do filho que tinha deixado aos cuidados da avó.
Era minha primeira vez em Recife e o motivo da viagem não era, a princípio, a visita à casa térrea, com portão de ferro e muro baixo, que permitiam adivinhar o jardim bem cuidado e as pinturas nas paredes. Eu, Israel, Alécio e Helvécio havíamos chegado dois dias antes (ou seriam três?), convidados pela Eldorado para o lançamento de um novo álbum de Antônio Nóbrega em forma de espetáculo brincante.
Tudo antes daquela tarde já tinha garantido assunto e lembranças para a vida. Nóbrega é desses artistas capazes de revelar o mundo em seus fonemas e gestos. Com seu “Madeira que Cupim não Rói”, transformou em amor profundo a quedinha que eu mantinha pela cultura nordestina. Fez nascer o frevo e ensinou maracatu como quem entendeu desde sempre sua missão na Terra.
Foi também na noite anterior que descobri que uma singela casquinha de siri poderia me matar em poucas horas. E que Nóbrega fez bem em escolher como parceiro o médico Wilson Freire, que não se acanhou em fazer do camarim um consultório improvisado.
Só que a plateia lotada, além de jornalistas vindos de Minas, também abrigava Ariano Suassuna, que depois do espetáculo ficou ali recebendo afagos, abraços e reverências. “Será que ele fala com a gente?”. Fez mais. Convidou para um passeio no Poço da Panela, pedacinho do centro de Recife que mantém construções do século XIX, jeito de cidade pequena e a casa-relicário do autor de “Auto da Compadecida”.
Não sei se era época de férias ou um fim de semana qualquer, mas da calçada dava para ouvir a molecada brincando no quintal. Para aquele menino com uma tigela na cabeça, era só a casa do avô, com suas janelas e portas escancaradas.
E foi como avô que Suassuna apareceu no jardim habitado por ícones de seu universo armorial, esculturas de animais, homens, santos e santas sobre pedestais e altares que foram apresentados sem cerimônia aos convidados embasbacados.
O queixo caído permaneceu enquanto nos acomodávamos na sala de estar com piso de ladrilhos coloridos, a cadeira de balanço com o formato do anfitrião, a fé e a mitologia sertaneja presentes em todo canto, parede ou corredor. Dava para ouvir o movimento preguiçoso na cozinha, quando Suassuna começou a dar sua entrevista – que também era aula, que também era show.
E foi um desfile daquilo tudo que é encontrado aos montes quando se digita “Ariano Suassuna” no YouTube e um tanto mais. Falou sobre punk, Chico Ciência, Comadre Fulozinha (e outras assombrações), o manto luxuoso de Rei do Congo que enfeitava a sala, a ligação entre a cultura nordestina e a mineira. Posou pra foto. E arrancou muita risada. E nos fez seduzidos.
Se não fosse o suficiente, entrou na van e nos levou para conhecer os espaços que tinha inaugurado enquanto secretário estadual de Cultura nas casas de artistas como Mestre Salustiano e Miguel dos Santos.
Desde aquele dia, tenho no meu currículo e faço questão de contar sempre que surge uma oportunidade que na minha estreia em Recife, tive Suassuna como cicerone. Não é pouca coisa.
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