Até pensei em escrever sobre outro assunto, ocupar este espaço com o de costume, revolvendo a terra do meu próprio canteiro. Mas de que jeito, se a horta de dona Efigênia, outro dia ostentando os mais bonitos pés de couve, está coberta de lama? Se Keila não vai mais dividir seus segredos enquanto colhe pimenta-biquinho no quintal? Se Geralda não tem mais as samambaias para cuidar e exibir, já que está tudo debaixo de barro?
Queria convidar você para aquela conversa que costumamos ter aqui de 15 em 15 dias, como se estivéssemos sentados no meio-fio. Mas de que jeito, se aquele sossego de Bento Rodrigues desapareceu como pó, se a vida besta de Paracatu de Baixo foi engolida por rejeitos, se aquele cenário nunca mais vai se repetir diante da moça debruçada na janela, das comadres sentadas no banquinho na calçada, da preguiça que sempre se ajeitava na varanda?
Cheguei a me perguntar várias vezes qual era a chance de eu ter alguma coisa relevante a dizer sobre esse crime absurdo (#nãofoiacidente) que varreu vidas, histórias, memórias por centenas de quilômetros, se não era melhor tentar ser profunda falando do que me é conhecido, como a minha infância ou as façanhas dos meus filhos. Mas de que jeito, se Pâmela não vai ter a chance de ver Manu encenando “O Casamento de Dona Baratinha”, se Nicolas vai precisar pegar emprestadas as lembranças dos outros para saber como era sua irmã mais velha, se os gritos da neta vão acompanhar seu Francisco até seus últimos dias de vida?
Investiguei no meu umbigo se tinha algum tema que pudesse criar uma conexão entre nós, estabelecer essa relação de intimidade de que só a crônica dá conta. Mas de que jeito, se no Natal deste ano não vai ter cheiro de pernil vindo da cozinha, nem pisca-pisca pendurado na roseira do jardim, nem Missa do Galo na igrejinha, nem criança correndo pra pracinha pra estrear o presente que Papai Noel deixou atrás da porta?
A gente pode até ensaiar engolir em seco e tocar a vida em frente. Mas de que jeito, se o novo dia nunca mais será anunciado pelos canários do seu Antônio, se o horizonte hoje se deita na lama, se não há mais caminho que chegue? O único jeito é não esquecer.
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