O interior sempre invade Belo Horizonte. Não só pelos micos correndo nos fios telefônicos e atalhando caminhos. Ou pela algaravia dos pássaros nas árvores ao amanhecer. Ou pelos históricos ambulantes de algodão-doce nas praças.
Há uma atmosfera bucólica atravessando o futuro da capital mineira, cortando a sua dinâmica de metrópole de quase três milhões de habitantes.
Épocas remota e atual coexistem em alguns hábitos, paisagens e cenas. Nem sempre estamos inteiramente em 2021. Nem sempre estamos absolutamente no presente ou rumando ao desenho dos Jetsons.
Quando tenho que fazer gravações para televisão, de casa, em home office, no bairro Lourdes, além de me preocupar com o barulho das construções ao lado, costumo ser surpreendido pelo carro de som que vende verduras, frutas e ovos caipiras. Diferente das reformas vizinhas com horário marcado, o feirante barítono aparece quando quer.
Com os pedreiros, às vezes posso berrar da janela e implorar por uma pausa redentora. Já com o motorista, não tenho acesso ou alcance. Nem existe como sair atrás dos pneus como um cachorro louco.
O volume acachapante do megafone entra pelas janelas com o estrondo de relâmpagos.
“Abacaxi, melão, mamão…”
Não se trata de caixa de som. É alguém com discurso presencial, segurando o berrante ao volante, numa narração esportiva tresloucada, rápida, envolvente e engolindo as vogais.
A ambulância, o caminhão de bombeiros e as viaturas, mesmo com o giroflex piscando e as sirenes ligadas, são mais discretos.
A tendência é apresentar o estoque de produtos orgânicos nas traseiras das camionetas e kombis pré-históricas. O barulho do motor é alto e colabora para a fixação das camadas sonoras pelo ar.
Fica impraticável seguir com a minha fala. Os vídeos viram liquidificador. E o pior é que o veículo costuma parar na minha esquina, fortalecendo a provocação, aguardando para transformar curiosos em clientes.
Preciso respirar fundo, esquecer a pressa e refazer o roteiro das ideias do início depois de vinte minutos. Isso quando o vendedor não decide dar a volta na quadra e consumir uma hora do meu trabalho. Quando acho que parou, seu eco ressurge com toda a força dos fundos dos edifícios e arranha-céus.
Não sei se é paranoia minha, mas guardo a impressão de que ele anda em círculos e me encurrala por todos os lados, num joguinho de nervos entre gato e rato. Nunca determino direito a sua localização.
É uma prática interiorana de venda móvel pela gritaria, um delivery de surpresa. Ainda funciona a comunicação à moda antiga, de pegar o consumidor pelo gogó, para que ele aproveite a facilidade da oferta e os preços mais em conta na porta da residência.
Os fiscais da Prefeitura pouco conseguem censurar e multar. De repente, do nada, o motorista desliga o som, camufla a sua natureza comerciante, entra de volta no portal do túnel do tempo e é apenas mais uma lataria comum no meio do engarrafamento.
Gato e rato com vendedor de frutas
'Costumo ser surpreendido pelo carro de som que vende verduras, frutas e ovos caipiras'
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