UM RIO QUE PASSOU EM MINHA VIDA

Bárbara Ferreira

Ao longo do rio Doce, falta de água, medo de contaminação e a morte de toda a fauna deixam as comunidades ribeirinhas desoladas e sem perspectiva de futuro

As águas que correm no rio Doce também carregam histórias, levam o sustento a milhares de famílias, alimentam tradições que permanecem por gerações e dão sentido a toda uma vida ribeirinha. Para os que estão às suas margens, o rio tem um singnificado afetivo, e muitas vezes é a garantia de sobrevivência. São comunidades de pescadores, moradores de pequenos sítios, gente que vive em fazendas, que, com a chegada da lama, testemunham, incrédulos, uma mudança drástica e que já os afeta de diferentes maneiras. O rio, vital para quem está à sua beira, não é mais reconhecível.

Ao longo do seu trajeto, a lama determinou não apenas a destruição de um bioma e de uma bacia, mas também encobriu o futuro de milhares de pessoas. “Não sei mais o que a gente vai fazer. O que as autoridades vão fazer por nós. Talvez daqui uns 20 ou 30 anos, eu pesque aqui de novo. Mas agora, é SOS rio Doce”. Assim, o pescador profissional Reinaldo Gonçalves, 55, tenta se acostumar com o fato de que pode morrer sem colocar seu barco novamente na água.

Os rejeitos da barragem da Samarco atingiram o rio Doce nas imediações da pequena cidade de Santa Cruz do Escalvado, e chegaram até a sua foz, no Espírito Santo. A reportagem de O TEMPO percorreu toda a extensão afetada, passando por pelo menos 14 cidades e vilarejos. Apesar de a falta de água em cidades maiores como Governador Valadares e Colatina ser o impacto mais evidente, foi entre os moradores da zona rural, os fazendeiros e os pescadores que a equipe encontrou as principais vítimas.

A lembrança que persiste ao ver a água enlameada que toma conta do rio Doce é a dos bons tempos da pesca. Os relatos dão conta de peixes com mais de 10 kg e fazem um inventário com os nomes dos preferidos, com destaque para as curimbas e os dourados. “Pesco desde os 15 ano, nasci e vivi toda a minha vida na beira desse rio. Sempre teve muito peixe e eu passa o dia todo na água. E é isso que mais vai deixar saudade”, conta o pescador Wagner Oliveira Vieira, 31, ao ver dezenas de peixes mortos no local onde, dias antes, ele ancorava seu barco.

Nos mais de 500 km de rio afetados pelo desastre, essas comunidades são muito semelhantes. Vida simples, casinhas pequenas, uma forte ligação com a terra e com a água. Havia sempre crianças na beira do rio, pescadores carregando suas tarrafas e barcos ancorados de ponta a ponta. Agora, os equipamentos de pesca estão sendo guardados em casa, os barcos sendo retirados da água e o que antes era fonte de lazer e alegrias, hoje traz medo de contaminação e do futuro. “Está todo mundo evitando o contato com a água. Temos medo e não sabemos o que vai acontecer com todos nós, que já nos acostumamos a viver com o rio. Morre tudo. Acabou”, lamenta Roberto Carlos de Castro, 40.

“Estamos na piracema e os peixes estão tudo cheio de ovos. A lama entra no nariz deles e eles não aguentam e param de respirar. Alguns são mais fortes e tentaram sobreviver, mas estão todos morrendo. É muito difícil ver eles desse jeito: mortos na beira do rio”

Roberto Carlos de
Castro, 40,pescador

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O cheiro é forte, a água é feia e a aglomeração de animais mortos na beira do rio aumenta a desolação dessas comunidades. Além disso, há o desespero em busca de água. O dano causado pela lama atingiu, de acordo com o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Doce, 12 municípios, que tiveram a captação de água interrompida, entre eles Galileia. Como a cidade é pequena, o apoio não chegou como em Governador Valadares e, por lá, cada um se vira como pode. “Trabalho em uma fazenda a cerca de 40 km da cidade. Meu patrão tem um poço artesiano e nos cedeu um pouco de água. Enchi vários galões e fizemos uma bomba caseira para encher a caixa d’água. Mas não sei até quando vamos conseguir nos manter assim”, se preocupa o agricultor Clodoaldo Rodrigues de Souza, 69.

A grande questão para essas milhares de pessoas é como será o futuro. Será que poderão pescar novamente? Haverá água? Ainda não há uma resposta, mas as lembranças seguem com a lama rumo ao mar.

SILÊNCIO DE UM CANTO SAGRADO

Índios da tribo Krenak veem na lama a morte de toda a sua cultura. Junto com os rejeitos de mineração, suas tradições correm para o mar e deixam apenas ecos de um rio que já foi doce

“O rio é lindo. Obrigado, Deus, pelo rio que nos alimenta e banha. O rio é lindo. Obrigado, Deus, pelo nosso rio, pelo rio de todos.” O canto mais importante para os índios da tribo Krenak não faz mais sentido. Homenagem ao rio que eles chamam de Watu, a música fala da abundância de água e de peixes que foi arrasada pela lama e já não existe mais. “O rio Doce é a forma de vida para o nosso povo e, agora, ele morreu. Morre rio, morremos todos”, lamenta o nativo Giovani Krenak, 31, prevendo que, daqui para frente, o hino que alegrava as crianças será sobre tristeza.

Mais ligados ao rio do que qualquer outro povo, os Krenak acreditam que o curso d’água é a base para a sua cultura. Na única aldeia que ainda resiste em toda a sua extensão, o rio é mais do que um meio de vida. É símbolo de sabedoria e a representação de um avô sábio, que os orienta, guia e ensina.

Além da extinção da bacia, o desespero para os quase 600 índios que vivem no local é o desaparecimento de sua principal referência. A tribo usa a água do rio para consumo e limpeza, se alimenta dos seus peixes, se locomove por ele. “O sentimento agora é de indignação. Estamos sem peixes, sem água, sem caça e sem a nossa cultura”, protesta Giovani.

A aldeia fica nas proximidades do município de Resplendor, no Vale do Rio Doce, e o acesso à tribo é por uma estrada de terra, que margeia a Estrada de Ferro Vitória-Minas, por onde a Vale, acionista da Samarco juntamente com a BHP Billitone controladora da ferrovia, transporta seus minérios para exportação. Para os índios, essa briga já é antiga, mas agora foi o golpe final.

“Eles querem dizimar o nosso povo. Já tivemos muitos problemas, mas esse, não sei se vamos conseguir superar”, diz Giovani. Ainda sem saber como seguirão a sua vida e ameaçados de perderem a sua força e suas tradições, os Krenak têm pressionado a Vale para que a empresa apresente, ao menos, uma proposta de recuperação para a região. Desolados, eles ainda têm esperança.

“Água é vida. A situação está começando a ficar muito preocupante. Tem gente aqui que vive da pesca e isso está matando muitos peixes. Mas a maior preocupação é ficar sem a nossa água.”

Sebastião Herário
comerciante

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PLANTAÇÕES E CRIAÇÕES TAMBÉM PEDEM ÁGUA

Bárbara Ferreira

Não só da pesca vivem os ribeirinhos. Normalmente muito ligadas à natureza, essas comunidades têm também plantações, criações de animais e a produção de leite como fonte de sustento, atividades que dependem da água do rio Doce. São centenas de fazendas, sítios e pequenas propriedades atingidas pela lama das barragens de rejeito da Samarco. Por enquanto, eles buscam água em outros locais e usam seus reservatórios para atender a demanda, mas não se sabe até quando isso será possível.

Para o fazendeiro Décio Pinto Coelho, 82, que vive na zona rural de Naque, no vale do Rio Doce, além da preocupação com as suas 200 cabeças de gado, a casa onde ele criou toda a sua família tem o rio como cenário, mas não traz o acalento e a tranquilidade de sempre. “Tenho essa propriedade há cerca de 40 anos. É triste ver tudo isso. Tem hora que dá vontade de ficar louco, mas não tem jeito”, conta, enquanto olha para a vista do rio, já alaranjado pela lama.

Por enquanto, ele está evitando que os seus animais tenham contato com a água e usa o pequeno poço artificial que ele mantém em sua fazenda. “Está quebrando um galho, mas ele já está secando e não sei até quando vai suportar”, diz. A solução esperada pelo pecuarista é a criação de poços artesianos, mas mesmo assim ele não sabe como vai ser o futuro. O que ele espera é que os responsáveis por essa tragédia arquem com os custos dessa água, que terá que chegar para manter sua produção.

CERIMÔNIA DE DESPEDIDA

No Espírito Santo, as beiras do rio Doce também são cheias de pescadores e comunidades ribeirinhas. A relação deles é extremamente passional e a espera pela lama foi dolorosa. Desde a notícia do acidente, eles já começaram a velar o rio. Na comunidade de Itapina, a maioria vive da pesca e alguns aproveitaram os últimos dias de água para nadar e se despedir do rio Doce.

ESPERANÇA NA CHUVA

Toda a região ao redor do rio Doce sofre com as enchentes, que são recorrentes e assolam tanto Minas Gerais quanto o Espírito Santo. Ironicamente, com a chegada dos rejeitos de minério que poluíram o rio, a esperança para muitos moradores do entorno são as chuvas. Eles torcem para que elas venham em grandes proporções para “lavar o rio”, mesmo que isso afete suas casas.