No Brasil, adquirir um veículo movido a gasolina, etanol ou diesel, é relativamente simples: basta ter recursos financeiros, uma realidade completamente distinta de quem vive em megalópoles chinesas como Pequim e Xangai, onde a política imposta pelo governo é draconiana. 

Na China, que vem capitaneando a eletrificação da frota mundo afora, existe uma licença única para carros a combustão, sujeita a sorteios com espera de até 10 anos e custos que ultrapassam R$ 150 mil (200 mil yuan).

Lotus Emira, com motor V6 a gasolina, estacionado em hotel, em Xangai - Igor Veiga/ O TEMPO

Privilégio desde os anos 80

Em 1986, Xangai entrou para a história como a primeira cidade chinesa a adotar um sistema de leilão para placas de carros a combustão.

Na época, o governo local buscava frear o crescimento desordenado de veículos, que já ameaçava paralisar o tráfego. O preço inicial de uma placa girava em torno de 10 mil yuans (cerca de R$ 7 mil), valor astronômico para a média salarial da década.

O mecanismo, porém, não era visto apenas como controle: tornou-se uma fonte de renda para os cofres públicos, um modelo que décadas depois seria replicado em escala nacional.

Quando a poluição virou emergência

A virada do século XXI trouxe um crescimento econômico acelerado na China – e com ele, uma frota de 78 milhões de carros em 2010, dez vezes maior que em 2000.

O resultado foi catastrófico: cidades como Pequim registraram índices de poluição 40 vezes acima do recomendado pela OMS, e o trânsito consumia até 6 horas diárias dos moradores. 

Em 2013, um denso smog - a mistura de neblina, fumaça e material particulado suspenso no ar - reduziu a visibilidade de áreas da cidade a 200 m e forçou o governo chinês a agir. 

A solução? Expandir os leilões e sorteios de placas de automóveis a combustão, iniciados em Pequim (2011) e Cantão (2012), para conter o iminente colapso urbano.

A 'geopolítica' das placas na China

Enquanto Xangai manteve o modelo de leilão – onde quem paga mais leva a placa –, Pequim optou por um sorteio "democrático", com chances ínfimas.

Para ser ter uma ideia, em 2023, apenas 20 mil placas a combustão foram liberadas na capital chinesa para um total de 2 milhões de inscritos.

em Xangai, o leilão mensal garante placas aos mais ricos: em julho de 2024, uma licença para carro a combustão atingiu o valor médio de 150 mil yuans (R$ 117 mil), preço de um SUV compacto no Brasil.

Tamanha disparidade criou duas classes de motoristas na China: os que podem pagar pelo privilégio e os que dependem somente da sorte.

O auge das restrições

Desde 2018, a China endureceu ainda mais as regras para quem ter acesso aos carros não-eletrificados. Placas de veículos a combustão tornaram-se intransferíveis, exceto para herdeiros diretos, e as cotas caíram drasticamente.

Em Xangai, apenas 4% das novas licenças são para carros a combustão. Já Pequim destinou 80% de suas vagas a elétricos, pressionando a migração para automóveis 100% elétricos ou híbridos plug-in, rotulados na China como "veículos de nova energia", ou NEVs.

Paralelamente, migrantes de outras províncias enfrentam uma barreira extra: precisam comprovar 5 anos de residência e contribuição previdenciária para participar dos sorteios.

Placas verdes: revolução silenciosa

Enquanto as placas azuis são destinadas aos carros a combustão, e valem fortunas, os carros com placas verdes (dos elétricos e híbridos) são o rolo compressor da política ambiental chinesa.

Desde 2014, NEVs têm registro prioritário: em Xangai, a licença sai em 3 dias, sem leilão. O resultado? Em 2024, 51% dos carros vendidos no país foram elétricos. 

Para o cidadão comum, a conta é clara: uma placa verde economiza até 200 mil yuans (R$ 157 mil) em custos diretos, sem contar subsídios e isenções fiscais fornecidos pelo governo, além de não serem submetidos ao sistema de rodízio.

Heranças, fraudes e o preço social

O sistema criou um mercado obscuro. Como não é permitido vender placas, famílias as registram em nome de idosos – um avô em Xangai pode valer mais morto (por deixar uma placa de herança) que vivo. 

Já os "casamentos por placas" são golpes comuns na China: em 2021, por exemplo, a polícia de Pequim desbaratou uma rede que cobrava 80 mil yuans (cerca de R$ 60 mil) para forjar casamentos e transferir licenças veiculares.

Para migrantes, porém, o custo é invisível: sem placa, são banidos dos centros urbanos, dependendo de transporte público das grandes cidades chinesas, quase sempre superlotados.

Muitos acabam apelando para o uso das lambretas elétricas, que vem tomando o espaço das bicicletas nos grandes centros urbanos da China.

Ar puro x desigualdade

Os números oficiais celebram um ar mais limpo na China. Pequim reduziu em 45% os poluentes desde 2013. Mas o preço social divide opiniões.

Para a classe média urbana, ter um carro a combustão na China virou símbolo de status; para os críticos, é um Apartheid velado, onde o direito de ir e vir depende do tamanho da carteira ou da sorte.